por Bruno Salles Pereira Ribeiro*
O tipo penal é a estrutura legislativa que informa quais ações são proibidas (verbos típicos) e, em alguns casos, como essa conduta deve ser executada, quais objetivos por trás dessa conduta ou quais as consequências dela deve decorrer (elementos típicos).
Segundo o art. 14, inciso I, do Código Penal, um crime é consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Por isso, em regra, todos os tipos penais são descritos em sua forma consumada (como “matar alguém”).
Sem prejuízo, a maioria dos delitos, ainda que assim não descritos, podem ocorrer na forma tentada, quando, “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. A tentativa, ocorre, portanto, quando no caminho que se deve percorrer para se reunirem todos os elementos do tipo penal, por alguma situação externa à vontade do agente criminoso, ocorre alguma situação que o impede de lograr êxito em seu objetivo.
Esse caminho que leva à consumação de um crime é conhecido pela expressão latina “iter criminis”, que é definido em fases. Na primeira fase está a cogitação, o pensamento, o planejamento intelectual ainda não exteriorizado por nenhum ato. Na sequência do itinerário criminoso, aparecem os atos de execução ou os atos preparatórios. Esses últimos precederão os primeiros, mas nem sempre são necessários (uma pessoa portando uma arma que em um ato de fúria atira contra outra vai da cogitação à execução sem qualquer fase intermediária). Por fim, quando todos os atos de execução preenchem todos os elementos do tipo penal chega-se a fase da consumação.
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O resumo pode parecer simples até o momento, não fosse o fato de que no último século de evolução da dogmática criminal, jamais se chegou a um consenso sobre os limites entre atos preparatórios e atos executórios. Na doutrina especializada são encontradas diversas teorias que vão desde superados critérios puramente subjetivos (a avaliação do agente sobre sua conduta) a tentativas de fixação de critérios objetivos formais e materiais, passando por referências teleológicos (como efetiva ocorrência de um perigo ao bem jurídico protegido pelo crime). Destarte, pode não haver consenso, mas não faltam referenciais teóricos.
A questão ganha contornos de inédita complexidade no caso dos crimes contra as instituições democráticas previstos nos artigos 359-L e 359-M, do Código Penal, por força da Lei 14.197/21. Tais delitos, aos contrários de todos os outros previstos em nosso ordenamento, tem como verbo típico a ação de “tentar” e por uma razão singela e substancial: ocorrendo o resultado naturalístico previsto nos tipos penais (a abolição do Estado Democrático de Direito ou a deposição do governo legitimamente constituído), seria impossível a punição por tais delitos pois os criminosos, agora ilegitimamente no poder, naturalmente, não puniriam a si mesmos. Assim sendo, a consumação desses delitos se dá com mera tentativa, ou seja, como início de atos de execução que não atingem seu objetivo por motivos alheios à vontade dos agentes.
Adira-se o fato de que não se trata de delitos simples, cometidos por apena uma pessoa contra outra (como o roubo ou homicídio). Como pontificou Juarez Tavares, trata-se de um delito de empreendimento, que depende de complexa ação orquestrada e de atos de execução de várias pessoas.
A operação “Tempus Veritatis” revelou uma série de fatos que apontam para a prática dos delitos de tentativa ora analisados pelo ex-presidente da República e seu entorno: a redação e revisão de minutas de decretos que deporiam autoridades; a realização de reunião ministerial na qual havia divisão de tarefas, prestação de contas e cronograma sobre a hora de “virar a mesa”; a articulação com membros de Grupos Especiais das Forças Armadas; a pressão sobre o Comandante do Exército. Somam-se a eles outros já notórios, como a afirmação a pleno pulmões do ex-presidente de que não obedeceria às decisões da Suprema Corte e o constante discurso falso sobre fraudes no sistema eleitoral, cujo objetivo sempre foi minar a credibilidade do processo. E que sem dúvida alguma, culminaram em graves ações como os vandalismos do dia da diplomação do presidente eleito, o malsucedido atentado à bomba no aeroporto de Brasília e, claro, o 8 de janeiro.
Evidentemente, no itinerário criminoso, tais fatos extravasam em muito a fase da cogitação. Muitos atos foram executados com um desiderato que se revela cada vez mais claro, na medida em que novas evidências vão sendo reveladas. Atos que sem dúvida colocaram em perigo o próprio estado democrático de direito, pois aptos à ruptura e sedição.
Caberá ao Supremo Tribunal Federal definir os limites dos atos preparatórios e executórios no caso concreto. E tais limites serão fundamentais para a própria solidez das instituições. Considerar que a tentativa só ocorreria com a presença de tanques nas ruas ou disparo de balas, poderá colocar nossa jovem – porém resiliente – democracia perto demais de perigos que a ela podem ser fatais. Vale lembrar que nem sempre a história se repete como farsa: o golpe de 64 foi antecedido pela tentativa de 61, não levado a cabo por motivos alheios à vontade dos golpistas, cuja empreitada jamais foi punida.
* Bruno Salles Pereira Ribeiro é advogado criminalista. Mestre em Direito pela USP. Coordenador Adjunto do Grupo Prerrogativas.
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