Maurício Rands*
A Constituição, em seu artigo 86, abre a possibilidade de suspensão do mandato do presidente da República. Se 342 membros da Câmara dos Deputados aprovarem eventual denúncia por crime comum que venha a ser encaminhada pelo Procurador Geral da República (PGR). E se essa denúncia for recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Aí, o julgamento corre perante o STF. Se, depois de 180 dias, o processo ainda não houver sido concluído, o presidente reassume o mandato. O que também ocorre se ele for absolvido.
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Sérgio Moro acusou Bolsonaro de interferir na Polícia Federal. Sustentou que o vídeo da reunião ministerial do dia 22/04 prova suas acusações. Tanto que o presidente, em seguida, demitiu o chefe da PF, o do RJ e o próprio ministro. Tal como ameaçara na reunião cujo vídeo o país quer conhecer. No requerimento de instauração de inquérito ao STF, Augusto Aras, o PGR, alegou que “dos fatos noticiados, vislumbra-se, em tese, a tipificação de delitos como os de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), coação no curso do processo (art. 344 do CP), advocacia administrativa (art. 321 do CP), prevaricação (art. 319 do CP), obstrução de Justiça (art. 1º, § 2º, da Lei 12.850/201), corrupção passiva privilegiada (art. 317, § 2º, do CP) ou mesmo denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), além de crimes contra a honra (arts. 138 a 140 do CP). Os dois últimos potencialmente imputáveis a Moro.
Um presidente pode praticar atos de gestão como trocar dirigentes da PF. O que não pode é praticar esses atos de exoneração e nomeação com desvio de finalidade. O país já está ciente de que Bolsonaro mexeu na cadeia de comando da PF sem ser por motivo de conveniência administrativa. Em suas palavras, “vou interferir. Ponto final”. Terminou por confessar que a troca seria para impedir os que “querem f… com ele e a família”. Ou seja, queria interferir na PF para impedir que suas investigações lhe prejudicassem. Ou a seus familiares e amigos. Por isso, já está configurado o desvio de finalidade, vedado pelo Direito. Ao requerer a instauração do inquérito ao STF, o PGR vislumbrou que o desvio de finalidade, no caso, poderia também configurar os crimes comuns listados em seu requerimento.
O inquérito poderá concluir que a interferência do presidente teria ficado na mera intenção. E intenção não é crime. Mas pode coletar provas de que o presidente teria ido além das intenções. Inclusive com perícia nas mensagens de áudio que Moro diz ter apagado em seu próprio celular. Também com outras mensagens do próprio presidente e de outros ministros. Pode ouvir o senador Flávio Bolsonaro e seu suplente Paulo Marinho para esclarecer a entrevista que o empresário ontem concedeu à Folha de S. Paulo. Quando revelou que, uma semana depois do 1º turno das eleições de 2018, o senador Flávio Bolsonaro foi comunicado, por um delegado da PF, de que a PF iria segurar a Operação Furna da Onça, sobre as ‘rachadinhas’ na Assembleia do Rio, que envolviam Fabrício Queiroz, seu assessor. Assim esclareceria se essa seria uma razão adicional a justificar a obsessão do presidente em interferir na PF, especialmente na do RJ. Já desde o início do governo, como afirmou Moro. Em suma, o inquérito pode apurar não ter havido crime. Mas também pode chegar a indícios da prática dos crimes aventados pelo PGR. Caso em que o PGR pode oferecer a denúncia penal ao STF pelo rito do art. 86 da CF.
Para os apoiadores do presidente, que o veem como vítima da velha política, se o PGR, a Câmara e o STF o processassem, ele poderia provar o não cometimento de qualquer crime. E, absolvido, depois da suspensão, poderia voltar ao governo e se concentrar em tirar o país da crise. Para os que o veem como um Presidente que agrava tanto a crise sanitária quanto a crise econômica, o país teria a oportunidade de, com um governo provisório durante os 180 dias da sua suspensão, tentar uma reação coordenada para evitar mais mortes e mais perdas de emprego. Para esses, o afastamento, ainda que temporário do presidente, possibilitaria algum diálogo entre as três esferas de governo, o mundo empresarial e a sociedade civil organizada. Concentrado em sua defesa, Bolsonaro deixaria de atrair tanto a energia nacional. O país ganharia 180 dias de fôlego. Nossa imagem no exterior melhoraria. Mas, tudo isso faria sentido em um país menos polarizado e de cultura política mais sofisticada. Infelizmente, não é o caso.
* Advogado formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem PhD pela Universidade de Oxford.
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