Eugênio Aragão *
O atual governo é chefiado por um cidadão que ganhou as eleições presidenciais na base da mentira, da agressão e da recusa de debater. Seus correligionários promoveram, ao longo de sua campanha, ataques virulentos ao Tribunal Superior Eleitoral, sua presidente e seus ministros. Colocaram sob suspeita a imparcialidade da Corte e sua capacidade de organizar um pleito sem fraudes. Depois, empossado Jair Bolsonaro, meteram-se – inclusive a líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann – a pedir o fechamento do STF, a exigir o impedimento de seu presidente e, dentre outros, do ministro Gilmar Mendes. Acusaram-nos de corrupção, sem qualquer prova robusta e vilipendiaram a reputação do judiciário.
As forças democráticas do país reagiram de pronto na defesa das instituições. Juristas, esforçados em preservar a Constituição e o Estado Democrático de Direito, subscreveram documento de apoio à Corte Suprema e o entregaram solenemente a seu presidente, demonstrando repúdio aos ataques covardes dos que, circulando em torno do chefe do governo, queriam a destituição de seus magistrados.
Vemos com surpresa, agora, o mesmo presidente do STF, que foi atacado, aceitando “pactuar” com o cidadão eleito pelo engodo, comprometendo-se com a pauta mui controversa de seu governo. E ainda chamam isso de “Pacto Republicano”, quando o eleito não tem pejo de dizer que se sente feliz ao ver a Corte estar “de seu lado” e posa a fazer “coraçãozinho” com as mãos, juntamente com a mesma Joice Hasselmann que queria o fechamento do Supremo, ao lado… pasmem…! sim, do presidente do STF, tão arduamente defendido pelos juristas democratas!
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O “elogio” do chefe de governo, a atribuir descaradamente parcialidade ao tribunal mais alto do país, não sofreu qualquer nota de crítica ou de desmentido por sua assessoria de comunicação social. Pelo contrário: no dia seguinte, a imprensa divulga amplamente a fotografia com um presidente do STF risonho em tal deplorável companhia. E, para não deixar dúvida de que a conversa com o presidente do país foi muito produtiva, anuncia-se a retirada de pauta da discussão, em controle concentrado de constitucionalidade, da descriminalização do uso de cannabis sativa – maconha – exigida por parte da sociedade e combatida pelo governo atual, em sua agenda conservadora e moralista.
Encerrada a peça de teatro de mau gosto, noticia-se, mais, que Jair Bolsonaro recebe visita do Corregedor Nacional de Justiça na companhia de seu filho investigado na justiça do Rio de Janeiro, senador Flávio Bolsonaro. Por certo, não para trocarem receitas de bolo ou para conversarem sobre como anda o tempo em Brasília.
Essas atitudes tornam inevitável, também, lembrar de episódio protagonizado pela ex-presidente do STF, em que, ao charlar com empresários num almoço, avisara que não pautaria as ações de controle concentrado sobre a extensão da presunção constitucional de inocência, porque o ex-presidente Lula “não deveria receber tratamento diferenciado”. A declaração assume renovado significado quando o juiz que o condenou sem provas, apenas por convicções, se torna ministro da Justiça do governo do presidente que ficou feliz de ver a Corte Suprema “de seu lado”, ao mesmo tempo em que o relator de habeas corpus impetrado em favor de Lula no mesmo tribunal não vê razões para declarar a suspeição do juiz governista, mesmo diante de tanta evidência de parcialidade.
Lembremos que o ex-presidente Lula, prospectivamente vencedor das eleições presidenciais de acordo com todas as pesquisas de voto, foi impedido delas participar pelo TSE, única causa que permitiu Jair Bolsonaro ser vitorioso e nomear ministro de estado, o juiz que condenou seu adversário, para excluí-lo do pleito.
O que pensar desse imbroglio todo? Será que os protagonistas judiciais não percebem o quanto de sua credibilidade está em jogo com suas encenações públicas? Não seria mais aconselhável, nos tempos tão conturbados que experimentamos, com tanta hostilidade à Constituição Cidadã de 1988, atitude mais discreta, mais soberana dos magistrados?
Confesso-me, como jurista, como professor de direito, como membro aposentado do Ministério Público e, hoje, como advogado, perplexo com o papel a que pessoas que nos devem conduta ilibada se prestam. Entristeço-me com o pouco caso que se faz com o heroico apoio de forças democráticas ao STF, quando seu presidente pactua sorridentemente com aqueles que querem seu ocaso.
Esses tempos de pós-verdade são estranhos demais para alguém como eu, que tem orgulho de ter valores claros como a justiça, a lealdade, a decência e a fidelidade à Constituição e ao Estado Democrático de Direito que esta fundamenta.
É curioso que Lula, hoje preso (sim, hoje preso, Sr. Ciro Gomes, injustamente preso – e não me chame de “babaca” por isso), quando presidente da República, nunca foi personagem desse tipo de tentativa (bem sucedida?) de cooptação do Poder Judiciário; cooptação, esta, que promove um verdadeiro “golden shower” sobre a Constituição brasileira. Tratou as instituições com o respeito, com o decoro que lhes é devido, zeloso por submeter-se à sua independência e por preservar a harmonia entre os poderes.
O que consola é estar do lado certo da história. Nós democratas, ainda acreditamos no Brasil e na sua resiliência para superar tantos cruéis desafios. Louvamo-nos na carta do Santo Padre que, reconhecendo a profunda injustiça que se promove contra um condenado sem provas, encoraja Lula – e a todos nós – a resistir. Resistir com a Lei do nosso lado. Resistir com a esperança que não esmorece. Resistir com a certeza de que lutar é preciso para garantir a nossos filhos e netos um país melhor, mais livre, mais democrático, mais tolerante, mais plural e, sobretudo, mais consciente de seu papel histórico e de seu lugar no mundo.
Não há “papelão” de magistrados que nos fará perder a fé nessa luta. E, como acreditamos no ser humano, acreditamos, também, que magistrados, que todos respeitamos e defendemos no seu papel constitucional, saberão por a mão na consciência e mudar de atitude. Para o bem do Brasil e de todas e todos nós!
* Eugênio Aragão é subprocurador geral da República aposentado, professor de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Foi ministro da Justiça.
>> Do mesmo autor: A mentira não pode vencer as eleições
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