Em julgamento marcado por uma reviravolta, a 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) manteve, por dois votos a um, decisão liminar (tutela de urgência antecipada) de primeira instância que obrigou a retirada de uma entrevista concedida ao Congresso em Foco por Julyenne Lins Rocha, na qual ela, ex-mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o acusava de violência sexual.
O conteúdo, publicado em junho de 2023 por este site, foi excluído em 14 de julho de 2023, tão logo o veículo tomou conhecimento da liminar concedida pelo juiz Jayder Ramos de Araújo, da 10ª Vara Cível de Brasília, após pedido de Lira.
Mudança de voto
A confirmação da liminar ocorreu no último dia 7, depois que o desembargador Rômulo de Araújo voltou atrás em seu voto, após ter votado pela derrubada da decisão liminar. O Congresso em Foco teve acesso às duas certidões, que confirmam a mudança de voto do desembargador, mas não à íntegra dos seus argumentos.
Inicialmente, Rômulo havia seguido o voto do relator, desembargador Carlos Pires Soares Neto, que recomendou a derrubada da liminar, o que permitiria a republicação da entrevista. No dia seguinte, porém, ele impugnou o julgamento porque, segundo ele, não foi acolhido um pedido de destaque de sua autoria.
Em seguida, o desembargador reviu seu voto, juntando-se a Carlos Alberto Martins, que aceitou a tese da defesa de Arthur Lira ao se posicionar, desde o primeiro momento, pela manutenção da decisão provisória. O processo é movido por Lira contra o UOL, parceiro comercial e provedor do Congresso em Foco.
Imagem abaixo mostra mudança de voto de desembargador:
Imagem abaixo mostra a decisão inicial da Turma do TJDFT, acolhendo o pedido do UOL para derrubar a liminar que retirou matéria do Congresso em Foco do ar:
A reportagem procurou o TJDFT para se manifestar sobre a mudança de voto do desembargador. “Esta Assessoria de Comunicação informa que os magistrados não comentam decisão judicial, por expressa vedação legal, de acordo com o que estabelece a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Dessa forma, qualquer questionamento, deve ser feito no âmbito do processo, conforme disposição legal”, respondeu o tribunal. Parte no processo, o UOL deve entrar com embargo declaratório. Trata-se de instrumento jurídico pelo qual uma das partes de um processo judicial pede ao juiz (ou tribunal) que esclareça determinado aspecto de uma decisão proferida quando se considera que há alguma dúvida, omissão, contradição ou obscuridade.
Fato novo
Na entrevista concedida à editora Iara Lemos, Julyenne acusou o deputado de ter praticado violência sexual contra ela em 2006, no mesmo dia em que ela denuncia ter sofrido agressões físicas do ex-marido. O relator, desembargador Carlos Pires Soares Neto, usou o seguinte argumento ao se manifestar pela derrubada da liminar:
“(…) No caso sob exame, o conteúdo da matéria jornalística publicada, não obstante se refira a fato ocorrido no mesmo dia daqueles apurados na Ação Penal 869 pela Suprema Corte, ou seja, 5 de novembro de 2006 – processo em que A.C.P.L foi absolvido do crime de lesão corporal a ele imputado, tipificado no art. 129, §9º, do Código Penal – o suposto crime de estupro, tipificado no art. 213, do Código Penal, e descrito no conteúdo jornalístico, não foi objeto de análise naqueles autos”.
Segundo o relator, as declarações dadas por Julyenne não podem ser consideradas como inverídicas, pois o suposto crime noticiado por ela não foi objeto da ação mencionada por Lira, que tratava a respeito do crime de lesão corporal, do qual ele foi absolvido.
O relator concluiu que não havia qualquer comprovação de que a notícia veiculada no Congresso em Foco dizia respeito a relato notoriamente inverídico e ofensivo à honra de Lira.
Primeiro acórdão
No dia 6, chegou a ser assinado um acórdão com o seguinte teor:
– “Ao analisar solicitação para remover o conteúdo jornalístico, o Judiciário deve ponderar os fatores específicos do caso para determinar se houve ou não abuso no exercício da liberdade de expressão ou de imprensa. Isso é especialmente relevante quando esse direito entra em conflito com outros direitos constitucionais igualmente importantes, como o direito à honra e à imagem.”
– “No caso sob exame, o conteúdo da matéria jornalística publicada, não obstante se refira a fato ocorrido no mesmo dia daqueles apurados na Ação Penal 869 pela Suprema Corte, não tratou do suposto estupro, não restando, de plano, comprovado o conteúdo inverídico e ofensivo descrito na decisão agravada, apto a deferir a tutela antecipada [liminar] postulada pelo autor na origem.”
– “A avaliação da natureza ofensiva dos comentários apresentados em questão deve ser realizada durante o processo legal adequado, após plena e cabal dilação probatória, quando as partes se defenderão adequadamente”.
– “Recurso conhecido, preliminar rejeitada e, no mérito, provido”.
Indenização
O Congresso em Foco não é parte do processo por danos morais movido por Lira. A ação é dirigida por ele somente contra o UOL e Julyenne Lins. O deputado pede indenização de R$ 100 mil de cada.
A preliminar rejeitada a que os desembargadores aludem acima foi um pedido do UOL para ser excluído da ação, por não ter produzido o conteúdo. A 1ª Turma Cível do TJDFT, no entanto, rejeitou o argumento, invocando o marco civil da internet, lei de 2014 que responsabiliza também o provedor pelo que publica. Em sua argumentação, aceita pelos desembargadores, o UOL reiterou que a entrevista feita pelo Congresso em Foco não era inverídica. Portanto, não havia razão para retirá-la do ar.
Liberdade de imprensa
Para pedir a derrubada da liminar, o UOL argumentou que a ex-mulher de Arthur Lira narrou que, no curso do processo por agressão respondido pelo deputado (AP 869), foi vítima de ameaças, o que a fez alterar o depoimento. O portal também ressalta que não houve qualquer ilícito na veiculação da entrevista, que seguiu os princípios da liberdade de imprensa, amparado pela Constituição Federal de 1988, que proíbe a censura.
No pedido de liminar apresentado à 1ª instância, em julho passado, o presidente da Câmara afirmou que o episódio relatado por sua ex-mulher havia sido objeto de ação penal (AP 869) no Supremo Tribunal Federal, processo no qual foi absolvido.
O desembargador Carlos Pires observou, em seu voto, que o tipo de recurso utilizado por Lira para pedir a liminar (tutela de urgência antecipada) não cabia nesse caso, conforme apontado pelo UOL no recurso. “Deve ser acolhida a tese do agravante de que estão ausentes os requisitos previstos no art. 300 do Código de Processo Civil (CPC) para a concessão de tutela de urgência na origem”, acrescentou o relator.
De acordo com o artigo 300 do CPC, a tutela de urgência é um tipo de liminar concedida pela Justiça quando há, no objeto contestado, elementos que impliquem perigo de dano ou o risco ao resultado do processo. Situação que não se enquadrava no caso, na visão do desembargador.
Repercussão
A determinação judicial para exclusão do conteúdo teve grande repercussão em diversos veículos do país. Também houve manifestação de repúdio por parte de várias entidades.
Nove organizações de defesa da liberdade de imprensa no Brasil, incluindo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e o Instituto Vladimir Herzog, assinaram conjuntamente uma carta em repúdio à ofensiva jurídica promovida pelo presidente da Câmara, classificada por elas como “censura”. Ele também entrou com ação contra outros veículos de comunicação que entrevistaram sua ex-mulher, como o ICL Notícias e a Agência Pública.
“As organizações de defesa do jornalismo e da liberdade de imprensa vêm a público mais uma vez repudiar a ofensiva do presidente da Câmara, Arthur Lira, de censurar reportagens e meios de comunicação”, diz a abertura da nota divulgada em 17 de julho de 2023.
“É inadmissível que o presidente da Câmara dos Deputados atente contra a liberdade de imprensa por trazer à luz denúncia de interesse público sobretudo em tema sensível à sociedade como é o caso da violência sexual e da violência doméstica”, argumentaram as instituições.
Os autores da nota de repúdio consideraram “condenável que se ordene retirada de conteúdo jornalístico” e afirmaram esperar a reversão da decisão. Confira aqui a íntegra da carta assinada pelas entidades signatárias:
Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
Ajor – Associação de Jornalismo Digital
Instituto Palavra Aberta
Tornavoz
Instituto Vladimir Herzog
Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores
Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Jeduca – Associação de Jornalistas de Educação
Repórteres Sem Fronteiras (RSF)
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