A ministra Carmen está em dívida com a cidadania desde o seu discurso de posse quando prometeu uma Justiça eficiente e rápida aos cidadãos. Sublinhe-se que estou me referindo a uma magistrada de carreira e não a essas jabuticabas de magistrados que caem de paraquedas em nosso supremo jeitinho, vindos de outras carreiras por injunções políticas. Pois bem, ministra, estamos esperando, mas a cada dia nossa tolerância vai encurtando mais.
Pois o que vemos não é o espírito da lei prevalecer, mas o abuso exegético da lei. Como no caso da lamentável decisão do ministro Lewandowski sobre o impeachment meia-sola. Ou do ministro Gilmar apelando para a responsabilidade política dos juízes no caso do julgamento da cassação da chapa de Temer. Ou mesmo agora, no caso do Tófolli pedindo vistas com o objetivo de fazer cera, procrastinar e não fazer andar com o processo.
Pois num país onde se produzem leis espúrias e inúteis, milhões delas que acabam por enfraquecer as poucas leis necessárias, como já disse Montesquieu, haverá sempre uma a ser interpretada por nossa burlesca Justiça de modo a favorecer algum interesse político, corporativo e privado inconfesso e imoral. Não tivesse o Brasil nascido sob a égide barroca da torção e distorção, da retorção e contorção.
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Tenho defendido que, no campo das artes, não resta dúvida de que a alma barroca brasileira é esplendorosa, e disso deve saber bem a ministra Cármen Lúcia, mineira de quatro costados. Mas no campo da justiça, da moral e da política é um desastre a prevalência desse barroquismo gongórico. O Brasil sob a retórica do pão de queijo contra a razão do pão-pão queijo-queijo. Sob o império do paradoxo, da metáfora, do eufemismo, da ironia, da hipérbole e outras dezenas de figuras retóricas, vamos trocando valores por atributos pela vida afora.
O que era para ser expressão de um estilo de arte virou expressão de vida. O burlesco teatral virou a burla imoral. O que era adorno virou motivo. O gosto pelo adjetivo parasita de um substantivo anêmico. Do meio tom, mais para o claro ou mais para o escuro, dependendo do olhar ou da encomenda do interessado. Do meio copo quase cheio ou quase vazio dependendo da sede do bebedor. O Brasil da prerrogativa e do privilégio. O Brasil do disfarce, da vã retórica, da embromação e tramoia.
E como se perde tempo nessas idas e vindas, nesse vira-e-mexe, que o tempo e andamento da justiça acabam por retardar o andamento da política, se não o da própria história de injustiças de nossa cultura barroca que, na ausência da racionalidade clássica, vai atropelando nossa alma romântica e até moderna.
Se não, vejam as duas últimas pérolas barrocas de nossa burlesca Justiça. A juíza federal Rosymaire Gonçalves de Carvalho, da 14ª Vara Federal do DF, manda suspender uma campanha de interesse público sobre a reforma da Previdência que informa o que todos já desconfiavam: o sistema é integralmente injusto, não republicano, uma vez que sustenta uma casta de 1 milhão de privilegiados do setor público com aposentadorias médias de R$ 16 mil contra uma massa de 30 milhões de trabalhadores do setor privado com uma média de R$ 1,2 mil de pensão.
A juíza acatou a reclamação de ultraje à imagem da corporação melindrada em detrimento da causa substantiva da campanha. Mais uma vez, a troca do essencial pelo supérfluo, do importante pelo extravagante. A juíza deveria se declarar impedida de julgar, pois é integrante da casta. Para além de leis, questão de simples moralidade pública.
Mas nossos magistrados têm uma dificuldade intransponível em considerar o juízo moral como fundamento do juízo legal. E ficam torcendo e retorcendo o sentido geral das leis, produzindo tortas sentenças pelos tortuosos caminhos de uma exegese barroca.
O outro ministro do supremo jeitinho opõe a defesa de alegadas garantias individuais contra a defesa do interesse público ao dar o terceiro habeas corpus consecutivo ao “Rei do ônibus”. Arguido pelo ex-procurador-geral – o que em qualquer alta corte do mundo já seria uma desonra – sobre sua suspeição pelo fato de ter relações pessoais com o réu, o ministro responde que não seria o caso segundo determina a lei de impedimento.
E segue tratorando a opinião pública e ofendendo o senso comum da cidadania, na defesa de supostos direitos individuais de um réu enricado com dinheiro público e assistido por grandes bancas de advocacia, alheio ao fato de essas mesmas garantias não serem concedidas diariamente a mais da metade da população carcerária brasileira que enche as cadeias públicas sem culpa formada ou sequer julgada em primeira instância. Burlesca Justiça célere para abonados e lenta quase parando para a gentalha. Burlescos juízes.
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