A convite do Faixa Livre, participei na manhã desta sexta-feira (18) de um debate com os professores Daniel Aarão Reis (UFRJ) e Daniel Kosinski (UFF) sobre o governo Lula: suas entregas até aqui, seus desafios e o que ainda pode vir pela frente.
Graças à ajuda da colega Bruna Pauxis, apresento abaixo as minhas intervenções, com modificações mínimas, apenas para tornar um pouco mais compreensível aquilo que falei. Espero que seja útil e que compense, ainda que parcialmente, minha absoluta incapacidade física de atualizar este blog com a frequência com que gostaria.
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O lado positivo da minha eventual ausência aqui é que tenho trabalhado em frentes que, mais cedo ou mais tarde, hão de tornar este Congresso em Foco mais interessante e mais útil.
Um excelente fim de semana pra você!
Link para a íntegra do programa: https://www.youtube.com/watch?v=LK1Bfq0tc-c&t=4272s
Minhas intervenções, na ordem em que falei:
PublicidadeQuestão democrática
“Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, eu botei até uma colinha pra mim para ser razoavelmente objetivo.
Em primeiro lugar, eu concordo muito com o professor Daniel Aarão Reis quando ele diz que a questão fundamental para o governo era a questão democrática, ainda que uma democracia com limites, uma democracia que nunca valeu totalmente para vastos setores da população, todos nós sabemos disso. Mas o pouco de democracia que nós conseguimos ter estava sob ameaça muito concreta. A gente viveu durante quatro anos um período realmente bastante esquisito e um governo com características militares. Não nos esqueçamos, havia mais de 6 mil militares ocupando postos civis, fazendo bobagens, basicamente. O caso mais clássico é a questão da saúde, onde houve uma política pública que, se não foi de genocídio, foi pelo menos de uma inépcia e de uma irresponsabilidade que vão ficar para a história brasileira para sempre.
Temos um governo que em 12 de dezembro, no dia da diplomação, enfrentou atentados, aquela confusão toda em Brasília, e depois no 8 de janeiro uma clara tentativa de golpe. À medida que as investigações na CPI vão avançando fica mais claro o que se pretendia fazer. Ali no 8 de janeiro a ideia era que a confusão de Brasília se espalhasse nacionalmente por várias cidades, por vários estados, criando a situação em que as Forças Armadas, naquele momento ainda sob forte influência bolsonarista, tomariam o poder, anulando o resultado eleitoral, o que seria um retrocesso impressionante. Então concordo muito com o professor quando ele lembra desse risco institucional.
Importância de ter maioria
O que a gente está discutindo aqui basicamente é a questão do suposto, digamos, sequestro do governo por parte do Arthur Lira, do Centrão ou, como você coloca, do grande capital. Olha: se você fizer as contas e botar todos os partidos de esquerda e centro-esquerda… eu acabei de atualizar esse número porque eventualmente há mudanças, parlamentares que saem e suplentes que entram… nós temos hoje exatamente 136 deputados. Ou seja: cerca de 25% da Câmara dos Deputados, somando todos os partidos de esquerda e de centro-esquerda – PT, PCdoB, PV, Psol, Rede, PDT e PSB. Somados! E olha que nem sempre todos os parlamentares de todos esses partidos votam com o governo sempre. Ora divergem à esquerda, ora divergem por outras questões, regionais, setoriais ou eventualmente até ideológicas. Há parlamentares aqui nesse campo mais de centro também. Mas, se você somar tudo isso, você tem exatamente 26,5% da Câmara dos Deputados. Ou seja, é impossível governar sem o apoio conservador, isso é um dado. E quem tentou bancar uma disputa com o campo conservador pela última vez, que a gente viu, foi a Dilma. E a gente viu depois como o Temer, com uma popularidade tão baixa quanto a da Dilma no seu pior momento ou, eventualmente, mais baixa que a da Dilma, soube se preservar e se manter no poder exatamente por costurar a relação com o Congresso, de forma a ter maioria.
Sem ter maioria, é impossível se manter no governo, muito menos colocar em prática políticas públicas de qualquer natureza que seja, seja na direção da redução das desigualdades, seja em qualquer outra direção. Então assim, ponto um pra mim: apesar das dificuldades, o fato é que o governo construiu uma maioria, que não é uma maioria simples, que não é uma maioria tranquila, que está sempre sob forte tensão, afinal é um governo muito amplo do ponto de vista partidário e ideológico, mas o governo conseguiu maioria e está aprovando as matérias do seu interesse, esse é o ponto número um.
Economia, o maior desafio
“O segundo ponto que me parece bastante claro é o seguinte, e aí, de novo, eu concordo com o professor Aarão Reis. Aliás, é uma extrema satisfação participar aqui dessa conversa com os dois Danieis, já li coisas dos dois e fico feliz de ter essa oportunidade, proporcionada pelo Anderson e pelo Faixa Livre. O que vai determinar o sucesso do governo e até mesmo a estabilidade política do país vai ser a economia. A gente vive um período muito longo de uma economia ruim, de uma economia que permaneceu bom tempo em recessão. Vejamos a quantidade de empresas em dificuldades, de pessoas desempregadas ou mesmo que pararam de procurar emprego, isso está em todos os estratos sociais. Ou pessoas com alta formação, todos nós conhecemos, pessoas com excelente formação universitária que não conseguem se empregar, sobretudo os mais jovens para entrar no mercado de trabalho. Então a gente vive ainda uma situação econômica muito ruim. E aí os primeiros meses do governo, no meu modo de entender, sinalizam melhoras.
Inflação caiu, o juro começa a se reduzir, você vê vários anúncios de investimentos, as expectativas estão em alta, tanto no campo da população, no campo mais geral, quanto no campo dos atores econômicos, dos investidores, empresários. Houve uma mudança de expectativa. Isso se reflete na pesquisa da Quaest, citada aqui anteriormente, onde tem um dado que eu acho muito interessante, que é o seguinte: operou-se, ou está em andamento, a gente vai ver nas próximas uma mudança interessantíssima, inclusive sob o aspecto regional. Quando você pega a pesquisa da Quaest, você vê que onde o governo melhorou mais foi exatamente onde ele estava em pior situação, onde tinha a pior avaliação. Foi na região Sul. Na região Sul, a aprovação do governo saiu de 48% para 59%, passou do Sudeste. Hoje, o governo tem sua pior avaliação nas regiões Norte e Centro-Oeste, depois Sudeste e, em seguida, Sul. Evidente que há várias leituras possíveis e há várias leituras ideológicas possíveis. Agora, do ponto de vista mais prático, eu vejo um governo que está agindo no campo da economia de forma a fazer as entregas que são necessárias para se manter no poder, no final das contas.
Retomada da normalidade
Outros pontos rápidos e que me parecem importantes. Houve, no meu modo de entender, uma retomada da normalidade institucional. “Ah, o pacto de 1988, a ordem constitucional exclui muita gente”. Mas é o melhor que a gente já conseguiu ao longo da história brasileira. Por mais limitado que seja, a gente nunca tinha dado cidadania para tanta gente, que passou a ter seus direitos reconhecidos na Constituição. Tudo isso estava com risco de se perder. Então retoma-se a normalidade do relacionamento com os poderes. Você não tem um presidente da República perseguindo jornalistas, perseguindo veículos jornalísticos, perseguindo artistas, perseguindo universidades, perseguindo políticos de oposição. Isso, pra gente que está aqui em Brasília, faz uma diferença enorme! Porque quase todos nós, que temos alguma independência em relação ao governo, sofremos muito com isso, inclusive fisicamente, economicamente. O relacionamento do governo com o Judiciário, com as instituições, com as organizações da sociedade civil mudou.
Os militares voltando aos quartéis, o que eu também acho ótimo! A gente tinha esse mito da eficiência militar e vimos o Pazuello, que para mim é o símbolo da incompetência militar. Foi um grande erro colocar general para comandar coisas que ele não entende e teve um monte de bobagem, em especial na área de saúde. O desmatamento caindo! Então eu acho que você tem um conjunto de coisas em andamento que apontam para uma recuperação econômica, e uma retomada, digamos assim, institucional, no caminho da democracia, ainda que com limitações. Cabe a nós melhorar essa democracia, não é? E você vê o Brasil voltando à cena internacional, participando das negociações e de encontros importantes. Agora, tem muito risco pela frente, tem muito desafio pela frente e tem muita coisa que pode atrapalhar, mas eu não quero me alongar mais senão monopolizo a conversa, então vou parando por aqui, por enquanto.
O Centrão
Bom, vamos lá, vou tentar ser bem objetivo. Você acredita que o Centrão vai entregar os votos que está prometendo? Acredito que vai entregar. Tem entregue os votos. Com chantagem, com muita negociação de emendas e cargos, mas tem entregue. A batalha de bastidores entre Lira e o governo é muito maior e muito mais complexa do que a grande maioria das pessoas imagina e do que nós, jornalistas aqui em Brasília, temos sido capazes de mostrar. Há uma guerra de bastidores. Esse episódio aí do Haddad com o Lira é revelador disso. Não há uma relação harmônica entre Arthur Lira e o governo, de maneira nenhuma. Quando o orçamento secreto acabou… quer dizer, na prática a gente não pode dizer que ele acabou inteiramente, mas hoje está muito mais fácil identificar a autoria das emendas… mas, evidentemente, o Arhur Lira ficou indignado. Boa parte do poder que o Arthur Lira tem sobre políticos de direita, de centro e também de esquerda vem da possibilidade de operar, de forma anônima, a distribuição de recursos para os municípios, direto para os prefeitos. Isso reelege gente.
Eu questiono muito essa ideia de que o Centrão é um “Direitão”, não acho que seja exatamente isso. O Centrão é um biombo para articulação de uma série de interesses que muitas vezes são até de caráter distributivista, vamos dizer assim. Porque o Centrão não é liberal. O Centrão é fisiológico, mas ele é gastador, ele é perdulário. Ele não é fã de Lava Jato, muito pelo contrário. Ele não é fã dos discursos liberais da Faria Lima, ele compõe com esses discursos. Ele é fundamentalmente, no meu modo de entender, fisiológico. O objetivo fundamental do parlamentar associado à liderança do Arthur Lira é se reeleger, ou eleger pessoas próximas, eleger o próximo prefeito, eleger pessoas da sua área de influência, nas suas bases.
Governo não é nem pode ser de esquerda
Então eu acho que está havendo aqui um equívoco, com todo o respeito aos meus ilustres debatedores, em relação à identificação da natureza do governo. Esse não é um governo de esquerda, não foi eleito para ser um governo de esquerda. Ele vem com uma composição em que as forças antagônicas, durante as duas décadas anteriores, PT e PSDB, na figura de Lula e Alckmin, se juntaram para derrotar o fascismo, para derrotar a extrema direita. É um governo de coalizão, é um governo que não pode ser de esquerda. Se um belo dia Lula e seus principais assessores acordarem e disserem “vamos mudar tudo, vamos fazer um governo de esquerda”, provavelmente vai ser derrubado. Não há base política-institucional, não há sociedade que dê sustentação a isso.
O professor Daniel Aarão Reis fala que “tem que tensionar”. Eu acho que ele tem alguma razão. O governo poderia ser mais ousado, o governo poderia ser mais criativo, poderia ser mais rápido e, em muitos casos, poderia ser mais eficiente. Há muitas áreas do governo em que as ações estão ou lentas ou insuficientes ou, simplesmente, na direção errada. A gente não tem tempo aqui para entrar em detalhes. Agora, o ponto fundamental é o seguinte: há um limite para tensionar. Porque você tem uma economia fraca, um Congresso dominado pela direita e pelo centro e você tem um governo que é necessariamente de coalizão. E tem complicadores aí pela frente.
Lira x governo
Uma questão que apareceu muito na nossa conversa, que hoje aparece em qualquer conversa política, é o tamanho desse personagem Arthur Lira. Quem é Arthur Lira? Como é Arthur Lira? Como é essa relação com Arthur Lira? Já disse que não é uma relação pacífica. É uma relação de idas e vindas. Ele chantageia, evidentemente. Ele censura. Nós, do Congresso em Foco, estamos com um conteúdo removido por decisão judicial porque ele entrou com ação para tirar do ar entrevista em que a ex-mulher dele o acusa de assédio, diz que foi ameaçada de morte e faz uma série de acusações contra ele. Ele usa desses artifícios. A união entre Artur Lira é indissolúvel? Não necessariamente. O Arthur Lira vai eleger o próximo presidente da Câmara dos Deputados? Não necessariamente. Tem um jogo de bastidores que eu acho que é mais complexo. Há muitas coisas em disputa e eu acho que membros importantes do governo Lula têm uma compreensão das limitações desse governo, mas têm, no meu modo de entender quando os ouço, uma vontade real de mudar este país na direção apontada pelos professores aqui presentes. Ou seja, de enfrentar a questão da miséria, a questão da pobreza. A gente não vai ver Lula pregando a revolução socialista, Lula não é um revolucionário. Aliás, eu próprio não pregaria a revolução socialista, eu mesmo não sou um revolucionário, nem sei se sou de esquerda.
“Nem o Lula é, né, Sylvio”, intervém o apresentador, Anderson Gomes.
Não sei. Eu acho que, no quadro brasileiro e no quadro global, acho que o Lula é um cara de esquerda, de centro-esquerda, que tem um compromisso que me parece real com o enfrentamento das desigualdades sociais, das desigualdades étnico-raciais. Tem um custo político para ele fazer um discurso que ele fez, já algumas vezes, de crítica a instituições policiais e a instituições militares. Eu acho que isso não é um negócio banal nem um negócio casual. Agora, o ponto concreto é que é uma situação de fato muito complicada. O PT, com os seus poucos parlamentares, é um personagem muito importante no Executivo, mas relativamente secundário no Legislativo. Precisa de alianças para poder fazer alguma coisa.
Disputa das Mesas da Câmara e do Senado
E você tem pela frente vários desafios. Eu mencionei a eleição na Câmara e no Senado, são desafios importantes. Como é que o governo vai se posicionar? Ele vai patrocinar uma candidatura contra o nome do Lira? O tema mais discutido no Congresso hoje, nos bastidores, não é reforma tributária, não é arcabouço fiscal, não são as investigações, é a Mesa da Câmara e do Senado, porque a gente sabe a importância disso. A gente sabe o que representou a eleição do Eduardo Cunha naquela situação de conflito com a Dilma. A Dilma peitou e ele ganhou e, a partir do momento em que ganhou, entrou numa coisa em que o objetivo dele era derrubar a Dilma. Então há muitos complicadores, há muitas sutilezas, há muitas coisas não ditas e um jogo de bastidor muito forte, e, evidentemente, o governo pode se atrapalhar.
Atenção para a briga Lira x Renan
Vou dar um exemplo aqui para encerrar minha participação, trazendo para nossa análise um fato e não uma opinião. Você tem hoje um conflito dentro do campo governista entre Arthur Lira, poderoso presidente da Câmara dos Deputados, e o senador Renan Calheiros, ex -presidente do Senado, talvez candidato novamente à presidência do Senado no ano que vem, é possível, e um parlamentar muito influente, o filho é ministro, ocupa um ministério, o dos Transportes. É um conflito regional, alagoano, mas que tem uma importância enorme para a República. Não nos esqueçamos, muitos anos atrás, o PC Faria, então tesoureiro e grande assessor, o carregador de mala do Fernando Collor resolveu montar um jornal em Alagoas para disputar com o jornal da família Collor, então comandado pelo Pedro Collor. Pedro Collor ficou furioso com aquele negócio e correu pra imprensa para contar as coisas que sabia a respeito de PC, de Collor etc.
Então essa briga, Lira versus Renan, é algo que a gente tem que acompanhar com lupa. O Renan é um político extremamente hábil e ousado. Com frequência, ele parte para cima, a gente já viu que em vários lances ele corre riscos. E o Lira é um político cerebral, altamente poderoso. Até que ponto o governo saberá administrar esse conflito? Aqui eu deixo um bastidor rápido. Há uma grande briga hoje que é alagoana, mas que é brasileira, que é a seguinte. A Braskem, em razão de empreendimento mineral lá, causou um afundamento de vários bairros lá em Maceió, prejudicando milhares de famílias. Aí costurou-se uma indenização de R$ 1,7 bilhão da Braskem para a Prefeitura de Maceió, que é ocupada por um aliado do Lira, deixando-se de lado o governo de estado, que também deveria ser indenizado, e deixando-se de lado as famílias, que tiveram uma indenização inexpressiva. A Petrobras faz parte da composição acionária da Braskem; não tem o controle, mas tem quase 50% do capital. O Renan se insurgiu contra esse acordo que a Petrobras já estava pronta para assinar e pagar.
Papel da esquerda
O mundo real, dessas disputas de Brasília e de todos esses bastidores, é mais complexo e nos recomenda alguma calma. Por exemplo: a gente viu lá em 2013. Não defendo a tese e discordo de quem defende aquela tese: “Ah, Bolsonaro é fruto de 2013”. De maneira nenhuma. As jornadas de 2013 tinham motivações reais e importantes, mas aquele tensionamento à esquerda foi sim de alguma forma apropriado pela direita. Há uma complexidade das crises brasileiras que recomenda um senso estratégico muito atilado por parte de todas as forças políticas, inclusive daquelas que integram o campo mais radical da esquerda.
(Com Bruna Pauxis)