por Flavio Carvalho Britto*
Norberto Bobbio, um dos grandes pensadores do século 20, definiu democracia como o governo do poder coletivo visível. No Estado despótico, segundo o filósofo italiano, o soberano vê sem ser visto. O ideal é justo o contrário, ou seja, que o agente de poder no âmbito do governo democrático aja com transparência, que possa ser visto por todos, de forma indiscriminada.
A Constituição de 1988 teve o enorme mérito de elevar a direito fundamental a garantia conferida a cada cidadão de acesso à informação junto a órgãos públicos, seja de seu interesse particular ou mesmo de interesse coletivo.
Para que a garantia não fique apenas no plano conceitual, o legislador vem – em um ritmo ainda aquém do desejável – aprovando normas que detalham como o poder público deve agir com a indispensável transparência. Apenas em 2011 – 23 anos após a promulgação da Constituição – foi editada a Lei nº 12.527, que cuidou de prestigiar a publicidade como preceito geral e o sigilo como exceção. Nada muito diferente do que já assegurava a Carta, mas o tema precisou ser regulamentado expressamente, justo por conta da dificuldade ao acesso a informações simples, como, por exemplo, a remuneração dos servidores públicos.
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Ainda hoje há repartições que tentam driblar esse dever básico de transparência: quem busca dados sobre a folha de vencimentos ou contratações se sente, por vezes, num autêntico labirinto, sem saída. Não é raro a informação simplesmente não constar do site da administração pública, o acesso ser vedado por suposto sigilo ou ainda depender de prévia autorização da autoridade, em flagrante deturpação do que impõe a Constituição.
Outro avanço deu-se em 2013, com a edição da chamada Lei de Conflito de Interesses (Lei 12.813), que obrigou o agente público a divulgar, diariamente, por meio da internet, a agenda de compromissos públicos. Não surpreende, contudo, constatar que a norma foi solenemente ignorada, demandando regulamentação apenas oito anos depois, em dezembro de 2021 (Decreto 10.889), e mesmo assim apenas no âmbito do Poder Executivo Federal. A execução ainda está longe de ser satisfatória e transparente, tanto que, em maio de 2023, a Presidência da República editou decreto criando um Conselho de Transparência.
O que se vê, pois, é que estamos longe de alcançar o grau desejável de acesso às informações em todas as esferas de poder. A plena consulta à agenda das autoridades ainda constitui um desafio, apesar de o presidente Lula ter dito em maio do ano passado, quando a Lei de Acesso à Informação (LAI) completou 11 anos, que “sem transparência não há democracia” – exatamente na linha de Bobbio.
Não faltam discursos e – admita-se – sequer faltam leis. Na prática, contudo, o cidadão não consegue enxergar o que se passa na esfera pública, que é, ao fim e ao cabo, por ele sustentada, através de uma carga tributária nada suave. Veja que há poucas semanas noticiou-se que o próprio Congresso Nacional omite a autoria das chamadas “emendas pix” das comissões permanentes. Trocando em miúdos, são bilhões de reais que partem de indicações de gabinetes de parlamentares e desaguam em estados e municípios das respectivas bases eleitorais, sem autoria conhecida e, pior, sem sequer conter uma destinação clara de interesse público.
A prestação de contas, por óbvio, ainda patina. Apenas recentemente o Tribunal de Contas da União obrigou estados e municípios a indicar a destinação dos recursos. É, portanto, todo um fluxo de dinheiro graúdo, com origem e destino desconhecidos, que passa por baixo do radar do controle de governança responsável.
É impossível deixar de pensar no atraso que significa um país não possuir um ambiente saudável de transparência, passados 35 anos da promulgação de sua Constituição. Veja-se, sob uma outra perspectiva, o trâmite do projeto de lei que regulamenta a atividade de representação de interesses (o lobby) junto ao poder público. A Câmara dos Deputados aprovou, no fim de 2022, um texto que disciplina a atividade de forma satisfatória. Apesar de merecer alguns ajustes pelo Senado Federal, o projeto representaria um pontapé inicial importantíssimo para que o Brasil se insira no rol de países que possuem normas claras de regulação, transparência e equidade. Uma lei do lobby, por exemplo, permitiria a qualquer cidadã e cidadão enxergar com clareza os atores envolvidos, a origem e a destinação das citadas “emendas pix”.
Não se enxerga, da parte do governo Lula, intenção de que o Brasil promova a adesão à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Além de representar um selo internacional de reconhecimento de governança, a candidatura, por si só, forçaria o país a implantar, enfim, uma lei de lobby.
De todo modo, com ou sem OCDE, quando o presidente Lula vincula corretamente a transparência à democracia, deveria atuar para que suas palavras não ficassem ao vento. Falta cobrar do Senado a aprovação do projeto de lei que, enfim, regulará a lei do lobby no Brasil. Aí, sim, estaremos, perto do poder coletivo visível, a que aludiu Bobbio, e da efetiva transparência democrática, como discursou Lula.
* Flavio Carvalho Britto é advogado e sócio em Britto, Brandão, Minc Advocacia
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