Marijane Vieira Lisboa*
Heitor Scalambrini Costa **
Lemos nos jornais (Folha de S.Paulo, 04/05/2023) que “a conclusão da usina nuclear de Angra 3 é prioridade nos planos do governo Lula”. Surpreendente, pois durante a acirrada campanha eleitoral de 2022, tudo o que se ouviu sobre as prioridades de um futuro governo Lula era garantir que cada brasileira e brasileiro tivessem as quatro refeições do dia, picanha de vez em quando, escola e saúde, além de moradia digna. No quesito ambiental, o combate ao desmatamento e à mineração ilegal, a demarcação das terras indígenas e a transição para uma economia de baixo carbono eram todas as prioridades mencionadas.
Nunca se falou em energia nuclear, Angra 3 ou bomba atômica durante a campanha eleitoral, mas eis que agora, de repente, descobrimos que o presidente escondia e nutria um grande carinho pelo tema. Bem, é um direito dele como pessoa acreditar que a energia nuclear seja segura, barata e necessária, mas como presidente de uma república democrática ele devia antes de definir as “suas prioridades”, submetê-las a uma discussão pública.
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Embora discutir em profundidade riscos e benefícios da energia nuclear exija o domínio de informações científicas, há coisas básicas ao acesso de todos, como o fato de que de repente, mesmo as melhores usinas podem explodir, como Fukushima, no Japão; que os rejeitos nucleares são um problema insolúvel pois não há ninguém que queira ser vizinho de um depósito desse tipo, e que a morte e as enfermidades por radiação são terríveis.
Já outras informações de caráter econômico costumam ser subtraídas da opinião pública, provavelmente porque elas ajudariam muito a formar uma opinião contrária a essa “prioridade”. A contribuição da energia nuclear na matriz energética do Brasil, por exemplo, continuará inexpressiva, em torno de 2% mesmo com Angra 3, enquanto o preço do megawatt- hora de origem nuclear chega a ser de 4 a 6 vezes maior, quando comparado a geração solar, eólica e hidráulica. O que implicará um aumento substancial na conta de energia de todos os consumidores brasileiros durante algumas décadas.
Outro exemplo: os R$ 17 bilhões que faltam para “acabar” Angra 3 (até agora gastou-se R$ 7,8 bilhões) dariam para abastecer 1 milhão de casas com módulos solares de 3 kWp cada uma (ao preço unitário de R$ 17 mil). Podíamos fazer cálculos semelhantes ao sistema solar fotovoltaicos, e para outros modos de produção de geração de energia descentralizados, adaptados às condições locais como biodigestores, geração elétrica de fio de água, uso de óleos vegetais. Ou mesmo pensar quantas escolas, casas e hospitais poderiam ser construídos com esses R$17 bilhões.
O último argumento do Ministério de Minas e Energia é que a energia nuclear é uma opção de “geração limpa” dentro da transição energética, uma vez que não gera gases de efeito estufa. Mas quando consideramos que o Ministério de Minas e Energia e o próprio Lula, também querem aumentar a exploração de petróleo e gás natural no país, inclusive nos recifes de coral da foz do Amazônia, temos todo o direito de duvidar da sinceridade deles em relação a uma transição energética devido às mudanças climáticas.
E, por fim, “transitar da energia fóssil” para a energia nuclear é um péssimo negócio, pois além de depender de um combustível também não renovável, o urânio, e razoavelmente escasso, seus rejeitos permanecem perigosos e irradiando por milhares de anos. É como transitar do vício da cocaína para o da morfina.
É um mistério, portanto, por que o presidente Lula elegeu Angra 3 como prioridade. Que tal explicar isso para os cidadãos e cidadãs brasileiros que o elegeram e que vão pagar uma energia muito mais cara nas próximas décadas e correr o risco de sofrer acidentes nucleares espantosos, pois Angra se situa entre as duas cidades mais populosas do país? Afinal, onde anda a democracia participativa nesse governo quando descobrimos que o presidente define suas “prioridades” de maneira tão pouco pública, embora a grana que será gasta seja nossa? E os riscos também?
* Marijane Vieira Lisboa. Graduada em Sociologia – Freie Universitat Berlin (1977), doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Atualmente é assistente doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora do curso de Ciências Socioambientais da PUC, ativista ambiental, membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e da Articulação Antinuclear Brasileira (AAB) e do Movimento Ciência Cidadã.
** Heitor Scalambrini Costa. Bacharelado em física pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mestre em Ciências e Tecnologia Nuclear pelo Departamento de Energia Nuclear da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), doutor pela Universidade de Aix-Marselha-Laboratório de Fotoeletricidade/Comissariado de Energia Atômica da França, professor aposentado da UFPE, ativista ambiental, membro da Articulação Antinuclear Brasileira (AAB).
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