Bajonas Teixeira de Brito Junior *
O PSDB, tendo como protagonista Eduardo Cunha, elaborou um plano político visando a derrubada de Dilma que, na falta de termo melhor, poderíamos batizar de “Plano Caracunha”. O plano consiste num atentado contra o estado de direito e a democracia, usando como máscara a cara do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Nos últimos dias, como se já não fosse o bastante, ficamos sabendo pelo próprio da existência de outra conspiração, dessa vez dirigida a derrubá-lo, e cujo nome segundo ele é “Operação Lava Cunha”.
Como esses malabaristas de sinal vermelho, que povoam as cidades atualmente, mostrando habilidades com bolinhas, facas, tochas, além de excepcional sentido de tempo para controlar o semáforo e correr o chapéu, Cunha parece estar tentando hipnotizar sua plateia jogando de uma mão para outra os dois planos. Ora ele faz acenos ao PSDB na estratégia Caracunha, ora choraminga se dizendo vítima da Operação Lava Cunha, num gesto pelo qual simula aproximar-se do governo Dilma.
Cunha coloca-se assim, podemos dizer, como o infiel da balança, garantindo sobrevida enquanto possa executar a coreografia do rebolation entre governo e oposição. A questão é como e quando esse pesadelo chegará ao fim. Como e quando o fio da navalha vai cortar na carne de Eduardo.
Alcunhado de “carne morta”, Cunha continua, porém, firme no comando dos seus cupinchas e cúmplices na Câmara. Embora vindo do vice-presidente do PSDB, Alberto Goldman, um aliado que tenta, ao menos na frente do público, se desvincular dele, a alcunha caiu bem. O Cunha inflado de arrogância dos primeiro dias deu lugar a um pobre coitado acuado cuja sobrevivência causa espanto e indignação crescentes. Poucos presidentes da Câmara gozaram de cumplicidade e apoio tão amplos. Nos primeiros dias, Cunha era o representante de todos os insatisfeitos, críticos e adversários do governo Dilma. Sua eleição foi vista como “uma derrota história do governo”. O petista Arlindo Chinaglia (SP), com o apoio da máquina do Planalto, amealhou apenas a magra soma de 136 votos contra os 267 votos dados ao rebelde Cunha.
Servindo à parte da opinião pública descontente com o governo Dilma, à estratégia dos partidos de oposição, aos apetites do baixo claro da Câmara e ao próprio PMDB governista, ele ocupava uma posição muito confortável. Seu serviço ao PMDB governista era enorme. A cada golpe baixo que disferia, o PMDB do vice-presidente Michel Temer se tornava mais indispensável para a governabilidade. A cada escrotidão praticada pelo presidente da Câmara, aumentava também o poder de barganha do PMDB chapa branca, que ficava mais guloso.
Como representante da Câmara, Cunha deu voz à voracidade do baixo clero que forma o chão do Congresso. Um dos primeiros projetos que aprovou foi o bolsa-esposa, permitindo à escória amealhar mais uns tostões com passagens aéreas “grátis”. Esse foi também seu primeiro revés. A opinião pública deu chilique e a medida foi cancelada. Não, porém, sem que Cunha aproveitasse a oportunidade para mentir em público: afirmou que a medida fora aprovada pela Mesa da Câmara, e não por ele. O que foi total descaramento, porque a bolsa-esposa tinha sido, apenas dois meses antes do episódio, uma das suas bandeiras de campanha para a Presidência da Câmara.
A medida, na verdade, era a retribuição de Cunha à sua base de apoio, a arraia miúda e turbulenta da Câmara, grupo de alijados das principais posições, quase sempre relegados a roer ossos depois que os grandes devoram a carne. A rebelião desses dissidentes é um evento natural e cíclico no Congresso, que se repete com certa regularidade, como os furacões do Golfo do México. Há última foi em 2005, há dez anos, com Severino Cavalcanti, do PP de Pernambuco, que foi eleito presidente da Câmara justamente para representar os chamados bagrinhos. Logo envolvido no “mensalinho” ― será que foram os grandes que armaram essa para o pequeno presidente? ―, o reinado de Severino teve vida curta. A arraia foi punida por ter se insurgido. Por dez anos ficou sem direito a pontificar na Mesa.
Cunha chegou ao estrelato em 2015, como o representante nato dessa massa de figurantes. Massa que costuma figurar no noticiário policial e nos cabeçalhos de processos. A Revista Congresso em Foco mostrou, em setembro desse ano, que quase 30% do atual Congresso sofre algum tipo de investigação. Cunha é o Ali Babá de toda essa gente de bem que não se sentia representada, isto é, que sofria por ter poucas indicações de apaniguados deferidas, por ocupar menos cargos do que gostaria, e não conseguir chegar aos lugares com as melhores possibilidades de ganho.
Do ponto de vista econômico, desde o seu primeiro dia, ao derrotar o governo, Cunha foi um fator de agravamento da crise. Ao complicar dia após dia, hora após hora, todas as medidas da aloprada Dilma, Cunha foi muito além dos seus U$ 5 milhões roubados. Ao que tudo indica, os prejuízos causados por ele, e pelo grupo que ele representa, ao Brasil estão na casa do imponderável.
Foi nessa condição que ele entrou como o grande aliado da oposição na estratégia do impeachment. Foi paparicado, saudado, prestigiado, apareceu como um mistura de corvo e águia na mídia, e tornou-se o centro absoluto dos acontecimentos. Não só multiplicou os entraves ao encaminhamento de todas as políticas do governo, mas se notabilizou como promotor de ações claramente destinadas a liquidar as iniciativas de Dilma. O que não foi nada difícil porque, como se vê diariamente, o pior inimigo do governo Dilma tem sido ela mesma.
Sua sorte foi que a obra notável de engenharia política do PSDB na área da implosão governamental – o Plano Caracunha de moralização – entrou em colisão com os fatos. As contas de Cunha na Suíça vieram a público, o menino de ouro da anticorrupção mostrou ter os dedos verdes cor de dólar. Isso, porém, não vexou o PSDB. Por três semanas o partido vem se comportando com a maior desfaçatez.
Nem o fato de Cunha ter afirmado que, se ele derrubasse Dilma, no dia seguinte o PSDB o derrubaria, parece ter servido para neutralizar as esperanças da corriola pró-impeachment. Agora mesmo na quarta-feira passada, 21 de outubro, a oposição, acompanhada do que a mídia chamou de “movimentos sociais anticorrupção”, entregou a Cunha o pedido de impeachment reescrito de Hélio Bicudo. A ocasião solene serviu à oposição para lançar o “Plano Natal sem Dilma”.
O Plano Caracunha continua, portanto, embora agora como um gesto desesperado, que a oposição faz sabendo que está jogando uma cartada perigosa. Tanto que Aécio não foi pessoalmente entregar o pedido de Bicudo, mas enviou o segundo escalão. Mais que nunca, nessa hora extrema, in extremis, Cunha se vê obrigado a situar-se na ambiguidade. Com uma mão ele recebe o Plano Caracunha destinado ao impeachment, enquanto com a outra gesticula contra o avanço da sua própria cassação – que, como mencionamos, ele chama de Plano Lava Cunha. O interessante será contar o tempo desse malabarismo, porque ele dará um indício seguro do grau de tolerância do país com a corrupção desinibida.
Na semana de 11 a 17 deste mês, as principais homes e jornais estamparam só manchetes escandalosas relativas às contas de Cunha na Suíça, e os detalhes de todo gênero envolvendo a mulher e a filha. A cara dura do sujeito, com repetidas afirmações de que não renunciará, umas até debochadas, não deixa dúvidas de que a lógica política está descolada do país. Para sua manutenção tem sido decisivo o fato de que o PSDB ainda negocia com ele como o executor legítimo dos ritos de abertura ou rejeição dos pedidos de impeachment. Aquilo que, num regime político normal, teria sido de fato uma ação efetiva anti-Cunha, o pedido de cassação protocolado pelo PSOL, foi assinado por apenas 46 dos 512 deputados, menos de 10% da Câmara.
Não se deve descartar que a sobrevida de Cunha se deva ao grau de depravação da própria cena política. Se a sofisticada Suíça dos chocolates e das estações de esquis nos Alpes foi reduzida simbolicamente à cueca dos políticos brasileiros (e, no fundo, é exatamente isso que é a Suíça, a cueca da parte substancial dos corruptos do mundo inteiro, traficantes, assassinos e ladrões), imagine-se os efeitos de tudo isso no Brasil. País que, além de jovem e influenciável, é sem vergonha e possui péssimo caráter.
Caso venha a fracassar, o Natal sem Dilma virará um “Natal sem Oposição”, que sairá bastante marcada por essas aventuras cafajestes – já que, de fato, a sobrevida de Cunha parece se dever quase exclusivamente à sua instrumentalidade como operador do ritual do impeachment.
P.s.: para aquilatar o teor intelectual do pedido de impeachment, atente-se a essa declaração do jurista Miguel Reale Jr. ao G1 sobre seu próprio trabalho: “Nos pediram para fazer um recorte e cola, e nós, com grande esforço intelectual, fizemos”. Só observando que um recorta e cola se tornou um grande desafio intelectual se compreende que Paulinho da Força tenha sido, no momento da entrega desse pedido de impeachment, um dos primeiros a discursar em nome da oposição. Orador e estilista, Paulinho acaba de inaugurar uma nova escola da prosa política no país com a entrevista que deu à coluna da jornalista Mônica Bergamo na Folha: “O Eduardo ficou puto”, diz Paulinho. “Agora temos que consertar a m. que fizemos.”
Estranho grupo esse: um jurista para o qual recorta e cola é grande esforço intelectual. Uma antiga vedete da luta contra o crime organizado, Hélio Bicudo, cujo pedido de impeachment dois dos seus filhos repudiaram como indigno da sua biografia; um orador boca suja, cuja vida pregressa, segundo a própria revista Veja, deve ser contada a partir dos processos de improbidade. A esse trio infernal se juntam os “movimentos sociais anti-corrupção”. O leitor que tire suas conclusões.
* Doutor em Filosofia, professor universitário e autor de livros como Lógica do disparate, Lógica dos fantasmas e Método e Delírio.
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