Neste ano de distanciamento preventivo para reduzir os riscos de circulação da covid-19, saudades do que foi vivenciado, e do que não foi, tem sido tema constante de diálogos sobre os vários tempos da vida e das trajetórias.
É como se o distanciamento demandasse encontros com memórias que ancoram a percepção do lugar histórico individual e dos grupos sociais. 2020 foi um ano de exposição à perversidade ditatorial do comando do Executivo do país, principalmente no que se refere à vulnerabilização coletiva à pandemia, como escancarou-se também da brutalidade assassina, racista, impiedosa, que ceifou vidas negras aos olhos do conjunto social.
Soma-se o fato de, quem se importa, ao se manifestar contra as atrocidades, ter encontrado até entre os seus, sintonia com a herança genocida de escravocratas e de capitães do mato, que referendaram a irracionalidade da omissão e violência. Respirar ficou tão difícil que, oxigenar o cérebro e conectá-lo ao coração parece ter sido a saída para buscar o que há de reserva de decência em humanos, nesta terra brasilis.
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Além do entendimento do racismo estrutural, estes tempos de passagem para o novo ano conduzem a entendimentos específicos sobre o cotidiano produzido pelas iniquidades. A percepção da morte coletiva, pontual, de um conjunto humano, nos tempos de festa e encontro, induz à necessidade ética de se aprofundar nos processos de vida dos que se foram e dos que ficam. O que desenhou a existência e a jornada de quem partiu e de quem foi deixado para trás?
Qual o sentido da mortalidade de homens negros pela covid em São Paulo, que é de 250 óbitos para cada 100 mil habitantes, sendo que entre os brancos, são 157 mortes a cada 100 mil, segundo estudos do Instituto Polis. No caso de mulheres negras são 140 mortes por 100 mil habitantes, contra 85 por 100 mil entre as brancas.
Segundo o IBGE, na análise das mortes no Brasil, pretos e pardos representam 57% dos mortos pela doença, enquanto brancos são 41% dos mortos e, ademais, as distâncias tendem a aumentar com o novo crescimento da pandemia. Entre os profissionais de saúde, também são os negros, na linha de frente, que mais vão a óbito. O que mudou no Natal e o que muda no Ano Novo das famílias negras, dos que sobrevivem, que têm nos encontros o fortalecimento para continuar?
No profundo apartheid brasileiro, exceto no mundo dos negros que ascenderam economicamente de forma individualizada e se integraram à classe média urbana, que romperam com a vivência cotidiana com suas famílias suburbanas ou rurais, os encontros natalinos e de ano novo têm contornos próprios.
São resultado do desenvolvimento desigual. Mas também são fonte de inspiração, energização e referências para a sobrevivência às estratégias de exploração e de extermínio, de ruptura das redes familiares e de afeto, que são promovidas pelos vampiros operadores das desigualdades, cuja finalidade é o controle social para assegurar o próprio bem viver e a segurança do capital.
Nos anos 40, com a industrialização e a urbanização, a maioria das famílias negras teve filhos que migraram para as cidades, onde compunham mão de obra barata. Esses negros brasileiros trabalhavam produzindo os natais de quem comandava o conjunto social. Assim, depois de servirem os “de cima”, como identificou Florestan Fernandes, seguiam para suas famílias, levando o que haviam comprado com suas economias e, ainda, o que era doado pelos patrões, geralmente o que sobrava das refeições e roupas usadas.
Contam, os mais velhos, que um dos irmãos buscava os que trabalhavam nas cidades de charrete, de forma que estivessem em casa no dia 25 à tarde, quando a família celebrava abrindo os presentes. Essa circulação de negros para os interiores, para a roça, para os quilombos, para as favelas, logo depois do trabalho nos ofícios do Natal, e até o dia de Reis, foi intensa até o início de 2020. Havia um vai e vem, vez que as visitas aos familiares dos centros urbanos também eram frequentes.
O porco assado, a lentilha, o pão doce na passagem do ano, depois, em 6 de janeiro, a queima da palhinha, a fé e fogo na desmontagem dos presépios, o terno de reis e toda a comilança, este ano só nos espaços íntimos e na saudade. Há encontros virtuais, para quem assim consiga se comunicar. Chorar os mortos será solitário.
Se para o mundo a torcida para que a vacina de prevenção à pandemia seja acessível é enorme, para os negros é o desejo maior nesta passagem. A irresponsabilidade dos dirigentes brasileiros, que nos põem atrás de vizinhos da América Latina e de quase todo o mundo, recai como o raio da morte sobre os afro-brasileiros, muito mais expostos. Pelo direto aos encontros, à comilança compartilhada e ao fortalecimento, vacina já é o sonho negro para 2021!
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