Democracia é um modelo em que o povo participa das decisões políticas com direito a voz, voto e em igualdade. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, afirma a Carta Magna brasileira de 1988. Entretanto, temos caminhado para uma democracia de exceção. Se Estado de Exceção é derivado do Estado de Direito e, como explicam Antonio Gasparetto e Pedro Tanaginno[1], “concerne a uma situação temporária de restrição de direitos e de concentração de Poderes”, democracia de exceção é derivada desta concepção de ordem. É uma forma legal daquilo que não pode ser legal, emprestando aqui o conceito do filósofo Giorgio Agamben[2].
O ocidente empurra o mundo para o liberalismo. E, também no Brasil, o Estado, sem transparência, situa-se no embate entre as necessidades sociais e os interesses dos grupos de poder. Os representantes do capital econômico, que entretanto viabilizam-se graças ao Estado, operam, muitos deles, por seus representantes eleitos sem transparência sobre os seus objetivos, pelos agentes do liberalismo que operam instituições das várias instâncias do Estado ou pelas corporações. Produz-se a aceitação social do inaceitável. Exemplo é o que ocorre em relação à tragédia de Mariana (MG), na sequência do colapso do complexo minerário da Samarco/Vale/BHP Billiton, em 5 de novembro de 2015.
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A participação social é impedida pelo Poder Judiciário. Todos os documentos da repactuação estão sob sigilo, o que impede qualquer forma de envolvimento popular devidamente informado. O diálogo facilitado pelo governo federal por meio da Advocacia-Geral da União (AGU) é, na verdade, a informação de algum conteúdo.
Pelas notas do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) sabe-se que o acordo de repactuação apresentado pela AGU tem o valor total de R$ 167 bilhões, dos quais R$ 100 bilhões de valores novos a serem pagos em 20 anos. A valoração independente comparada a outros acordos, com base em estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e de outros experts do Ministério Público indicam valores superiores a R$ 200 bilhões.
Atingidos e movimentos, excluídos das definições, questionam a proposta. Não estão informados sobre os critérios dos programas, sobre os detalhes do tempo de desembolso e sobre como será garantida a participação popular na execução dos recursos. Ademais, há uma mesa de negociação da qual atingidas e atingidos não participam, sendo que foi feita uma reunião com os movimentos sociais e atingidos com apenas uma parte da mesa, o Executivo.
Na democracia, que tem sua escala de valores referenciada nos conceitos de humano, sub-humano e não humano, tornou-se naturalizado o tratamento desumano a cerca de 2,5 milhões de pessoas atingidas que articulam uma poderosa rede produtiva, de cultura material e espiritual. Silenciamento, desqualificação, exploração e indiferença são as respostas às mobilizações nos territórios. O sacrifício do território, que continua sendo explorado pelas corporações – enquanto se escondem na mesa de repactuação e tentam limpar seus nomes e imagens por meio de vários artifícios –, será invisível às instâncias de justiça?
Desastres sociotecnológicos obviamente não se encerram com o passar do tempo. Ao contrário, seus impactos aumentam de forma exponencial dependendo da gestão, das medidas de precaução e prevenção.
Cientistas das várias áreas provam que as contaminações são evidentes e que os riscos para as pessoas e o ambiente se tornam mais agudos com o tempo, que o Brasil tem tecnologia para a realização de processos tecnológicos que respeitem a vida. Quais são os aspectos técnicos do acordo proposto? Continuará o negacionismo da realidade?
Como se pode definir que cada pessoa atingida que não tem comprovação formal de danos receberá R$ 30 mil como reparação? Com que critérios, se não houve discussão com pescadores e agricultores, artesãos e operadores do turismo? É preciso que sejam considerados aqueles sem registro e com registro. Ou será estratégia das empresas para se livrarem da maioria das vítimas, reduzindo-as às pessoas com CAR e com RGP? Imensas maiorias serão excluídas da reparação individual. É preciso mais tempo de discussão e um outro acordo específico para definição de valores justos aos direitos individuais.
Esconder a destruição da natureza na Bacia do Rio Doce, a contribuição para o aquecimento global, a prática de injustiça climática, a incompetência e a ineficiência para lidar com as responsabilidades socioambientais será possível até quando? Mas, principalmente, sobre a essência da democracia, homens e mulheres, a maioria das pessoas negras e indígenas atingidas será instada a assinar um acordo sem saber quais seus termos? Ser-lhes-á apresentado para decidirem, sob pressão das e dos arrogantes advogados das empresas, que os têm pisoteado? Combinados, critérios e parâmetros devem ser discutidos considerando o tempo que os parceiros da mesa tiveram para organizar suas propostas e, em diálogo, na mesa de repactuação.
[1] GASPARETTO JÚNIOR, Antonio; TANAGINO, Pedro Ivo Dias (orgs.). Democracia e Estado de exceção: entre o temporário e o permanente. Curitiba: CRV, 2020.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto, professora convidada e pesquisadora da Universidade de Cape Town, doutoranda da Universidade Federal do Maranhão.
O acordo é certamente um passo, mesmo após quase 10 anos após o rompimento. Mas um acordo desses precisa ser feito com a participação dos atingidos. Isso precisa ser esclarecido. Espero que esse dinheiro seja direcionado para os afetados.