O presidente Jair Bolsonaro falseou a realidade ao minimizar os incêndios na Amazônia e no Pantanal e ao atribuir a “ índios e caboclos” a responsabilidade pelo aumento da propagação das queimadas, que viraram alvo de pressão política e econômica internacional. Crise criada, segundo ele, por uma “campanha de desinformação” com objetivos econômicos.
As declarações dadas pelo presidente no pronunciamento de abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas nesta terça-feira (22) ignoraram o que a ciência já comprovou: a relação entre desmatamento, provocado na maioria das vezes pela grilagem de terras, pela exploração ilegal de madeira e pelo garimpo, e os incêndios criminosos. Na visão de especialistas ouvidos pelo Congresso em Foco, o discurso negacionista de Bolsonaro degrada a imagem do país lá fora, incentiva práticas criminosas e inviabiliza a solução do problema.
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“Ele esconde o problema feito avestruz. Faz o discurso de copo meio cheio, chamando de antipatriótico quem está querendo proteger o Brasil. Quem é patriota: quem defende a ciência e a verdade ou quem esconde os problemas que temos de controle sobre incêndio e pandemia?”, questiona o presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Ricardo Young, que também já comandou o Instituto Ethos.
Rastro de destruição
Nessa terça-feira (22) o Pantanal superou a marca de 16 mil focos de incêndio em 2020, o maior número de queimadas desde 1998, desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão do governo federal, começou a registrar os dados. Na comparação com todo o ano passado, em apenas nove meses houve um aumento de 61%. Estima-se que mais de 15% do bioma tenha sido destruído. Operação da Polícia Federal constatou que o fogo na região foi provocado deliberadamente para transformar a mata nativa em pastagem para o gado. Situação agravada pelo período de seca na região.
Entre janeiro e agosto de 2020, 3,4 milhões de hectares, uma área equivalente a 22 vezes a cidade de São Paulo, queimaram na Amazônia. Do total, 83% ocorreram em áreas recentemente desmatadas, de acordo com números apontados pela bióloga e doutora em Ecologia pela Unicamp Ludmila Rattis, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), organização não governamental científica.
Incêndios criminosos
Um dos cientistas brasileiros mais reconhecidos internacionalmente, por causa de seus estudos sobre o aquecimento global, o climatologista Carlos Nobre é taxativo: a quase totalidade dos incêndios no Sul da Amazônia e no Pantanal, principais motivos de preocupação de ambientalistas atualmente, é provocada de maneira criminosa. Isso diferencia a situação do Brasil, por exemplo, dos incêndios florestais ocorridos em países como Austrália e Estados Unidos, onde a maioria tem causas naturais ou é resultado de acidentes.
No Brasil, segundo o professor, o cenário é inverso: “Poucos são acidentais. Descargas elétricas são muito raras nestas condições super secas. Como colocar fogo está proibido por lei este ano, todos os fogos iniciados por humanos – talvez menos um pequeno percentual que é acidental – são criminosos”, disse Carlos, ex-pesquisador do Inpe, ao Congresso em Foco.
“O número de focos que podem ser indiretamente associados à limpeza de pastos e de resíduos agrícolas é menor que 20% da área incendiada. E a maioria dos incêndios de pequenas propriedades de comunidades tradicionais e até populações indígenas estão dentro destes 20%, ainda que a maioria seja em grandes propriedades”, explica o cientista.
Segundo ele, somente uma pequena parte dos incêndios vem do uso tradicional do fogo por comunidades tradicionais. “Eles têm experiência no uso do fogo e raramente perdem controle dos incêndios. Quase 80% da área queimada na Amazônia vêm de grandes áreas desmatadas e do fogo dentro da floresta”, diz o pesquisador, doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT).
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Terras indígenas
Estudo feito pelo Ipam mostra que apenas 7% dos focos de incêndio na Amazônia, em 2019, ocorreram em terras indígenas, que ocupam mais de 20% da região. O percentual apurado contraria o trecho do discurso de Bolsonaro em que ele atribui aos indígenas a responsabilidade pelo aumento das queimadas.
“Isso mostra que os indígenas não são os principais agentes do fogo, apesar de sabermos que eles também usam fogo em sua prática agrícola, como todos os demais no Brasil. Metade desses focos ocorreram em cinco terras indígenas pressionadas pelo garimpo, pela exploração madeireira ilegal ou invasão”, destaca a geógrafa Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam.
Neste ano, 31% dos incêndios e 42% do desmatamento na Amazônia ocorreram em terras públicas, ressalta Ane. “Isso é ilegal e deveria ser combatido, porque é patrimônio público. É a ação de grileiros, é a ocupação de terra pública por agentes que querem tornar essas terras privadas”, observa a geógrafa.
Floresta úmida
Em discurso para a ONU, Bolsonaro minimizou as queimadas na Amazônia, alegando peculiaridades de sua vegetação. “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”, afirmou o presidente.
Veja o vídeo do discurso dele:
O cientista Carlos Nobre constata que, apesar da umidade citada por Bolsonaro, a floresta amazônica está mais vulnerável ao fogo. “Cerca de 30% da área identificada como tendo pegado fogo é de florestas em pé, com o fogo consumindo a vegetação no solo, um valor muito alto, indicando que a floresta Amazônica, que é historicamente úmida e resiliente ao fogo, está ficando mais e mais vulnerável ao fogo”, afirma.
Essa mudança, segundo o professor, deve-se a vários fatores. “O do clima vem da severidade das secas e do aumento da temperatura que torna a biomassa mais inflamável. E a degradação florestal aumenta a penetração da radiação solar, secando mais a floresta e a tornando também mais inflamável”, explica.
Agronegócio
Para Ricardo Young, Bolsonaro desperdiçou uma oportunidade de defender o agronegócio brasileiro internacionalmente ao isentar completamente os produtores rurais dos incêndios na Amazônia e no Pantanal durante seu pronunciamento. “Ele deveria dizer que o agronegócio é responsável, mas que entre os produtores também há criminosos. Jogou para cima do indígena e do caboclo toda a responsabilidade”, criticou o fundador do IDS.
Na avaliação de Carlos Nobre, o uso do fogo na agropecuária brasileira é uma prática anacrônica. “Não é algo compatível com a agricultura moderna do século 21. O excessivo uso do fogo para expandir as áreas da agropecuária é na maioria das vezes ilegal. Há que melhorar muito a fiscalização e principalmente educar o agropecuarista a não usar mais o fogo”, defende.
Acordo sob ameaça
O agronegócio brasileiro tem sofrido ameaça de sanções internacionais por causa da política ambiental conduzida pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O receio do setor é de ser impedido de exportar determinados produtos como represália.
Governos da França, da Alemanha e da Irlanda ameaçam não endossar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul caso o Brasil não assuma compromissos com o manejo florestal sustentável. Em resposta à manifestação dos franceses, o Itamaraty e o Ministério da Agricultura divulgaram ontem nota na qual acusam os europeus de adotarem o discurso como prática protecionista para defender os seus interesses comerciais.
Na semana passada uma carta assinada por embaixadores de oito países europeus (Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Holanda, Noruega, Dinamarca e Bélgica) também alertou o governo Bolsonaro de que o “Brasil está tornando cada vez mais difícil para empresas e investidores atender a seus critérios ambientais, sociais e de governança”.
Impunidade
Na avaliação da diretora de Ciência do Ipam, o combate ao desmatamento e aos incêndios depende da combinação entre comando e controle. “É preciso que áreas ilegais sejam embargadas, equipamentos sejam destruídos e pessoas, presas. Os criminosos precisam ter a sensação de que, se fizerem coisa errada, serão punidos. Hoje reina uma sensação de impunidade muito grande”, considera Ane Alencar. “O problema está aí para todo mundo ver. Não estamos mais nos anos 90.”
Dados oficiais mostram que o governo tem reduzido a aplicação de multas ambientais, desestruturado órgãos de fiscalização como o Instituo Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e reduzido a aplicação de recursos em medidas preventivas.
Dinheiro guardado
A rubrica controle de fiscalização ambiental do Ibama perdeu quase 35% de seu orçamento: dos R$ 102,8 milhões de 2019 para R$ 66,2 milhões de 2020. A verba para prevenção e controle de incêndios florestais recuou de R$ 45,9 milhões anuais para R$ 38,6 milhões este ano, queda de 16%. No ICMBio, a área de fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais perdeu 48,6% de sua previsão orçamentária de 2019 para 2020.
No ano passado o Ministério do Meio Ambiente deixou de executar R$ 3,3 bilhões de seu orçamento, ou 39% do total. O ministro Ricardo Salles também abriu mão de ajuda internacional para preservação da Amazônia. O episódio repercutiu mal dentro e fora do país. Em maio deste ano o vice-presidente Hamilton Mourão reverteu a decisão do ministro de renunciar a recursos do bilionário Fundo Amazônia, constituído por doações internacionais lideradas pelos governos da Noruega e da Alemanha.
No fim de agosto, Salles foi novamente enquadrado por Mourão, depois de ter anunciado que as operações de contra desmatamento e queimadas na Amazônia e no Pantanal estavam suspensas por causa de boqueio de R$ 60 milhões na pasta determinado pela equipe econômica. No mesmo dia, o vice-presidente negou o core e o ministro teve de voltar atrás.
A exemplo de outras áreas, o governo tem investido na militarização no combate aos incêndios. A Operação Verde Brasil 2, liderada por Mourão, mobiliza 4 mil militares e custa R$ 60 milhões mensalmente.
Para Ane Alencar, do Ipam, a maior contribuição que o governo pode dar hoje e ao agronegócio é o inverso do discurso feito pelo presidente para a ONU. “É reconhecer e enfrentar a ação de grupos criminosos. O agronegócio hoje está sob risco porque os compradores exigem selo e têm medo do risco reputacional por causa das condições do Brasil”, afirma. “É importante que as pessoas entendam que não é escondendo o problema que ele vai deixar de existir. Não adianta tentar calar as instituições e dizer que quem denuncia é mau brasileiro. Se governo se posicionasse, dizendo que está enfrentando o problema não teríamos de passar por essa crise”, acrescenta a geógrafa, doutora em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida.