Vanessa Graziottin*
Impressionou-me a forma agressiva e desrespeitosa com que o deputado federal Marcelo Ramos (PL) se dirigiu publicamente aos artistas brasileiros.
Um ato covarde.
Uma manifestação desrespeitosa, preconceituosa e xenófoba.
Sob o manto de autodefesa de um povo e um território, nega o deputado qualquer forma e possibilidade de solidariedade e compromissos de uma ampla parcela progressista e democrática da nossa sociedade com as bandeiras mais caras da humanidade.
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Fui vereadora em Manaus por 10 anos, deputada federal e senadora pelo Amazonas por outros 20 anos, mas nem por isso tenho a presunção de achar que só “amazônidas” ou especialistas em Amazônia (que, a rigor, não existem, dado a complexidade da região) podem falar e, principalmente, levantar a bandeira de defesa da Amazônia, onde se encontra a maior floresta tropical do planeta. Todos os que defendem o desenvolvimento sustentável da Amazônia são muito bem vindos.
O deputado se move por uma lógica irracional, segundo a qual a defesa da Amazônia é prerrogativa exclusiva dos amazônidas. Pelo seu raciocínio, por analogia, somente os proletários poderiam defender o proletariado; apenas mulheres lutariam contra a discriminação de gênero e somente os indígenas, ou quem ao lado desses vivessem, poderiam defender a terra, a cultura e os direitos desses povos originários.
Mais que um mero equívoco o flerte com essas teorias pode, esse sim, aproximar à pensamentos, práticas e teorias totalitárias, fascistas e antidemocráticas. Propaga, o deputado, a falsa ideia de que artistas são contra os trabalhadores do campo, contra os agricultores familiares, contra nossos ribeirinhos. Não faça isso! Em nenhuma palavra há qualquer indicativo que leve a essa conclusão.
Os artistas não fizeram qualquer agressão ao parlamentar. Foram respeitosos. Nada mais fizeram do que um apelo, algo absolutamente legítimo numa democracia, onde ideias e opiniões devem transitar livremente sem patrulhamento e interdições apriorística. Tentar desqualificar os artistas não foi apenas grosseiro, antidemocrático. Foi absolutamente fora de propósito e só pode ser explicado por um eventual temor de retaliação do presidente, contra o “centrão”, por não entregar o que talvez tenha sido pactuado com o governo Bolsonaro, cuja agressividade contra a ciência e a Amazônia em particular é pública e notória. Num momento em que os dados indicam, novamente, aumento do desmatamento na Amazônia não me parece que se deva agredir exatamente aqueles que expressam sua justa preocupação com o desmatamento da região.
Difícil entender tanta agressão a quem busca o diálogo.
Difícil entender tanto desrespeito a quem se dirigiu de forma tão respeitosa.
Difícil entender tantos ataques a quem respeitosamente pede tempo e debate.
Difícil ver um apelo sincero respondido com tamanho sentimento de repulsa.
Difícil entender tantos pedidos de respeito de onde não se viu qualquer manifestação desrespeitosa.
Além de difícil, o mais triste é a tentativa de jogar os agricultores, pequenos produtores familiares, homens e mulheres simples do campo contra os que sinceramente se movem para defendê-los, defender o meio ambiente, defender o Brasil, defender a democracia.
Aliás, essa prática de colocar camponeses, trabalhadores (as) simples do campo e da cidade contra outros setores igualmente oprimidos, como os indígenas, sempre foi prática dos que intentam manter o domínio sobre a terra e a exploração humana como método de acumulação de riqueza.
Por fim, precisa o deputado explicar sim a urgência urgentíssima de tal propositura. A ponto de não poder esperar um único dia para sua deliberação. Assim pensando, Bolsonaro, Guedes e sua equipe editaram a MP 910, cujo relatório, com texto idêntico ao PL 2633, caducou em decorrência de sua não votação.
Assim também, com o mesmo sentimento de urgência urgentíssima – certamente não de solidariedade aos mais pobres, aos trabalhadores rurais e agricultores familiares – o congresso aprovou, com o apoio e empenho do mesmo deputado, uma reforma previdenciária que só retirou direitos e benefícios e dificultou a aposentadoria dos simples e sofridos homens e mulheres trabalhadores do campo e da cidade.
Explique-nos deputado, por que aprovar nesse momento e situação que prejudica significativamente os debates no Congresso Nacional? Por que passar por cima de um acordo de líderes que estabeleceu a votação somente de temas não polêmicos?
Como serão resolvidos problemas que se arrastam há anos? Não por falta de legislação, mas por falta de estrutura do poder executivo?
Explique-nos também o que o senhor entende por democracia. Diz estar aberto ao debate, mas em um único dia? Numa única terça feira? Essa é a régua de sua compreensão de democracia?
Como ex-parlamentar que teve o privilégio de representar nossa gente querida por tantos anos; como amazonense, embora lá não tenha nascido – razão para ser vítima de muitos e grosseiros ataques de adversários políticos, tal qual o senhor faz hoje contra os artistas – mas, principalmente, como quem sempre esteve ao lado dos pequenos agricultores, homens e mulheres do campo, me sinto à vontade para falar, até porque sempre fui a parlamentar do Amazonas que mais destinou recursos, através de emenda parlamentar, ao setor primário de meu estado, onde mais de 90% é composto de pequenos produtores.
O deputado me conhece, como eu o conheço. O deputado fez parte do PCdoB, partido a que sou filiada minha vida toda. Hoje o deputado está no centrão, filiado ao PL. Nem por isso deixou de ter um bom e respeitoso relacionamento com nossa bancada na Câmara dos Deputados.
Portanto, deputado Marcelo Ramos, agora eu é que me somo ao pedido dos artistas, que é o pedido de grande parte das entidades populares e ambientais. E me dirijo a todos os deputados e deputadas. Esperem a pandemia passar. Deem mais tempo ao diálogo. Ouçam os trabalhadores rurais, a Fetagri do Amazonas, do Pará, Maranhão, Acre e de outros estados. Ouçam o MST, as entidades indígenas. Ouçam as vozes de quem vive, estuda e tem compromisso com a nossa região.
Sobre o conteúdo do projeto temos muito a debater. Mas precisamos de tempo.
A começar podemos dizer que a legislação brasileira já – e há muito tempo – permite a regularização dos pequenos produtores, dos produtores familiares de forma simplificada, e por que isso não acontece? Por que não procurar fortalecer e recompor o orçamento dos órgãos fundiários do Brasil que tiveram seus recursos congelados com a EC 95?
A situação é tão difícil que a própria Câmara decidiu, através dos líderes, que nesse período, para além das matérias ligadas ao COVID-19, votaria apenas o que fosse consensual. E esse PL, em decorrência de sua complexidade, definitivamente não é consensual.
*Ex-senadora pelo estado do Amazonas.
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