*Por Beth Cataldo e Emilia Stenzel. A entrevista foi originalmente publicada na Revista Política Democrática de setembro, intitulada “A reinvenção das cidades” – uma coedição da FAP e da Tema Editorial.
Ao completar 80 anos, em 2017, o arquiteto Jaime Lerner cunhou uma frase reveladora na entrevista que concedeu ao jornal paranaense Gazeta do Povo: “Para fazer algo, há que se ter um certo compromisso com a imperfeição”. São palavras que revelam muito da sua disposição de inovar e ousar, mesmo às voltas com críticas e obstáculos de toda natureza. Na queda de braço para viabilizar aquela que seria sua primeira realização de impacto, o veto à circulação de carros na rua XV, em Curitiba, enfrentou a ira de motoristas e comerciantes da área. Venceu a disputa no já longínquo ano de 1972 e transformou a cidade em referência urbanística.
Com três mandatos como prefeito da capital paranaense e outros dois como governador do estado, Lerner acumula honrarias internacionais e rivalidades políticas. As Nações Unidas concederam-lhe o prêmio máximo para o meio ambiente, em 1990, e a revista Time o elegeu um dos 25 pensadores mais influentes do mundo em 2010. Mais adiante, em 2017, os leitores da revista norte-americana Planetizen, voltada para temas do planejamento urbano, o colocaram em segundo lugar na lista dos 100 urbanistas mais influentes de todos os tempos. Suas posições no debate urbanístico têm, portanto, relevância e repercussão.
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Em meio aos cuidados com a pandemia do coronavírus, Lerner aceitou responder, por escrito, um questionário para esta edição da revista Política Democrática. E discorreu sobre alguns de seus temas prediletos, como a crítica à presença excessiva do automóvel na vida das cidades e “as grandes cicatrizes urbanas” geradas pela separação entre locais de emprego e moradia. Criticou também as obras desnecessárias e grandiosas que riscam o cenário urbano no país, assim como não se furtou de contestar duramente o programa Minha Casa Minha Vida, acrescentando-lhe a irônica alcunha de “meu fim de mundo”.
Os trechos da entrevista concedida no dia 27 de junho de 2020 estão a seguir:
É legítimo afirmar que Brasil chegou ao século 21 com grande parte de suas áreas urbanas em condições precárias e até degradantes? Por quê?
Inicialmente, quero dizer que sempre tive uma visão otimista das cidades. Cada uma delas é o grande palco das transformações na escala do cidadão, onde se realizam os projetos de vida, onde as inovações podem ser aceleradas e onde se constroem as identidades coletivas e sentimentos de pertencimento. Vejo numa análise sequencial das últimas décadas que as cidades estão melhorando gradativamente, com evolução positiva dos índices de atendimento em saneamento básico, de queda da mortalidade infantil, de melhoria do IDH etc.
Evidentemente, temos muitas carências e deficiências, principalmente nas metrópoles onde se concentram muitos bolsões de miséria e áreas degradantes. Mas existe um conjunto grande de cidades médias e pequenas pelo Brasil afora que são dinâmicas e com qualidade de vida. Significa que, sim, necessitamos de uma política nacional de efetiva desconcentração que fortaleça a atratividade dessas cidades, para que as pessoas não necessitem buscar oportunidades somente nas metrópoles e para que estas tenham o respiro necessário para amenizar as suas mazelas.
Digo que boa parte das mazelas urbanas advém da excessiva presença do automóvel, que desencadeou gastos excessivos com obras viárias, que por sua vez criaram grandes cicatrizes urbanas e separam a moradia do emprego – o maior pecado das cidades. Mas insisto que toda cidade, qualquer que seja o seu tamanho, pode promover transformações positivas em quatro anos ou menos. Tanto através da construção de uma visão estratégica de como e para onde crescer e qual é o negócio da cidade, como da implantação imediata de acupunturas urbanas, intervenções pontuais que geram novas energias nas comunidades.
Cada cidade tem que construir um cenário de futuro, o pensar “fora da caixa” e nas potencialidades, estabelecer um norte virtuoso que represente o sonho coletivo. E promover uma gestão urbana que evite o desperdício em grandes obras por vezes desnecessárias, tendo em mente uma criteriosa escolha de tecnologias e prioridades em benefício da maioria da população.
A questão nevrálgica da mobilidade urbana é uma agenda não superada no país, especialmente nas grandes metrópoles. Há recursos financeiros e vontade política para vencer esse desafio?
A minha visão primordial desde sempre é “vida e trabalho” – juntos. Como a estratégia da tartaruga, que mora e se movimenta dentro da sua própria casca, a sua casa. Nestes tempos de pandemia, é mais que urgente. Levando isso ao planejamento de cidades, significa a indução permanente pela mistura de usos, funções, rendas, criando comunidades com sociodiversidade e autônomas; e por consequência, menos dependentes do automóvel ou de sistemas de mobilidade caríssimos para transportar grandes contingentes em grandes distâncias.
A mobilidade coletiva será sempre necessária, mas se atrelada a “vida e trabalho juntos”, você pode pensar em sistemas mais leves e mais baratos, associados a redes cicloviárias e outros modos alternativos, todos com rápida implantação. Nesta visão, é claro que há recursos financeiros; mas não tenho certeza se há vontade política.
As soluções inovadoras concebidas pelo senhor para a cidade de Curitiba, como a transformação da rua XV de Novembro em calçadão para pedestres, em 1972, e a criação do sistema de espaços exclusivos para ônibus, sobreviveram ao tempo? Ainda representam um impacto positivo para a cidade que as adotou de forma pioneira e para outras que se inspiraram nesse modelo?
Sim, creio que não só sobreviveram ao tempo, mas são, mais do que nunca, agendas necessárias para as cidades. Uma cidade só é humana se for para todos. A primazia explícita pelos espaços públicos, pelo pedestre, pela identidade, pela mobilidade coletiva, tudo, claro, acompanhado de máxima abrangência espacial, terão sempre impacto positivo para Curitiba e para as cidades que a adotar.
Em que medida a disseminação da criminalidade e a preocupação com a segurança alteraram o desenho urbano das cidades brasileiras e impuseram novos padrões arquitetônicos e estéticos?
Sabemos todos que a criminalidade resulta de um conjunto imenso de variáveis – sociais, econômicas, políticas – que influenciam o desenho de muitas cidades, como por exemplo através dos megacondomínios fechados, dos shopping-centers e dos aparatos de segurança cada vez mais vistosos e antiestéticos presentes em qualquer bairro.
Acredito, porém, que um bom urbanismo tem importante papel na amenização das mazelas nesse campo da segurança. Cito principalmente a busca por uma densidade razoável com uso misto, vida dia e noite, como as boas cidades europeias, e de bons espaços públicos, que facilitam a vigilância informal comunitária, sem falar da compactação e otimização da vigilância pública. É evidente que o espraiamento horizontal das cidades facilita a criminalidade, ao mesmo tempo que sobrecarrega sobremaneira os sistemas de segurança pública, sem falar das deseconomias de todas as infraestruturas urbanas físicas e sociais.
Os sucessivos programas oficiais para prover moradia à população de baixa renda – do antigo BNH à experiência mais recente do Minha Casa Minha Vida – cumpriram seus objetivos ou geraram distorções a serem enfrentadas e corrigidas?
Diria que o antigo BNH provia moradia popular com projetos arquitetônicos e urbanísticos mais criteriosos. Eu chamo o atual programa de “minha casa, minha vida, meu fim de mundo” pelo quase nenhum cuidado com a inserção urbana, verdadeiros guetos longe da malha urbana, sem infraestrutura social e comercial próxima. Claro que face ao gigantesco déficit habitacional no país, alguma coisa é melhor do que nada, mas distorções daqui para frente devem ser corrigidas. Temos o dever de criar comunidades urbanas dentro das próprias cidades, conectadas e próximas aos empregos. O custo maior dos terrenos tem que ser assumido pelo Estado, que será amplamente compensado face aos custos sociais futuros decorrentes de uma comunidade isolada e desassistida.
Qual o impacto da pandemia do coronavírus no futuro das cidades no Brasil e no mundo? As propostas de adensamento urbano defendidas por várias correntes urbanísticas perdem relevância neste momento em favor de núcleos urbanos descentralizados e menos propícios às crises sanitárias?
Acredito que, com a vacina chegando, quase tudo voltará ao “normal”. As cidades são entidades onerosas e dispendiosas, cujas infraestruturas não poderão ser desperdiçadas. Haverá adaptações, mas essencialmente as cidades continuarão iguais, nos defeitos e qualidades. E continuo defendendo um relativo adensamento urbano – compacidade – com uso misto e diversificado, que é bom para as pessoas, para o pequeno comércio, para o pedestre, para a segurança, para as mobilidades e, principalmente, para a economia de infraestrutura pública.
A atual pandemia deixará importantes lições, e as sociedades saberão se defender das próximas crises sanitárias. O importante nisso é que a densidade não é um complicador, mas sim a falta de saneamento básico e de atenção básica à saúde, direitos fundamentais à vida de todo cidadão. Núcleos urbanos descentralizados são bem-vindos independente de pandemias, desde que criados com empregos, lazer, equipamentos sociais e tudo mais, principalmente como alternativa às metrópoles saturadas. Cidades-dormitórios nunca mais.
Como a migração do consumo e das trocas comerciais e financeiras para as plataformas digitais alteram o planejamento das cidades, em termos de usos e das diferentes ênfases de zoneamento? O Estado terá um papel estratégico nesse processo? Há uma tendência recente pelo que podemos chamar de new ruralism em contraponto ao new urbanism?
Certamente, a consolidação do home-office e das plataformas digitais deverão resultar em redução de demandas por edifícios corporativos e de varejo; e em aumento da demanda por instalações de logística, por exemplo. Continuo acreditando que as cidades, pelo menos aquelas bem-estruturadas e sociodiversificadas, vão tirar proveito da era digital e aprofundar suas vantagens de “vida e trabalho juntos”, se adaptarão facilmente às possíveis novas demandas de trabalho remoto e, ao mesmo tempo – importante – facilitarão e garantirão o encontro das pessoas, pois o ser humano é gregário por natureza, e o presencial será sempre fundamental nas relações sociais, educacionais, profissionais e familiares.
Deverá haver uma tendência ao new ruralism, mas restrito a uma parcela muito pequena de maior poder aquisitivo. A grande parcela da população não tem como, mora nas cidades e depende das creches, escolas e hospitais físicos, sem falar dos empregos presenciais. Os poderes públicos deverão estar sempre atentos a estes processos, adaptando gradualmente o zoneamento de uso do solo para as novas realidades, mas sempre com a visão estratégica de facilitar a vida do cidadão comum, com uso, sim, de todas as tecnologias possíveis.
Se pudermos ter um olhar retrospectivo, como o senhor avalia sua contribuição como arquiteto e urbanista?
Tenho uma incrível satisfação quando vejo minhas ideias e projetos tomarem forma, virarem obras e a população usufruindo. Ao mesmo tempo, uma certa frustração, pois sempre quero fazer mais, propor mais, e vejo que os tempos atuais estão mais difíceis, tudo parece mais complicado na burocracia e na aparente falta de verbas. O que posso desejar é que o exemplo de Curitiba continue a inspirar pessoas e líderes, que não desistam, que as coisas são possíveis, que importante é começar, fazer acontecer.
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