Renata Camargo
Se o presidente Lula realmente pudesse falar tudo o que pensa publicamente, ele certamente parafrasearia às avessas o diretor de campanhas do Greenpeace, Sérgio Leitão. O ambientalista disse que “nunca na história desse país se viu um ministro do Meio Ambiente valer tão pouco”. Lula faria um trocadilho e diria que “nunca na história desse país se viu um ministro do Meio Ambiente valer tanto $$$$”.
A crítica do ambientalista à ministra Izabella Teixeira e os supostos elogios de Lula se dariam pelo mesmo motivo: a edição de um decreto de “desproteção” ambiental. Nos moldes que o governo buscava há tempos, a nova chefe da pasta verde assinou no início de abril, sem qualquer objeção, um decreto que abre brechas sem precedentes para a construção de hidrelétricas em unidades de conservação. A proposta, no mínimo estapafúrdia, irritou ambientalistas, que querem agora declarar vago o cargo da ministra do Meio Ambiente.
O decreto, considerado um “absurdo” ambiental, fui publicado no calor do debate sobre a construção da polêmica usina hidrelétrica de Belo Monte e, estrategicamente, passou quase que despercebido pela mídia e pela opinião pública. A norma – cujo teor já havia sido barrado pela ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva – foi editada sem qualquer publicidade e, ao que tudo indica, vem sob encomenda, para viabilizar legalmente algum(s) empreendimento(s) do setor de energia elétrica.
De nº 7.154 e editado em 9 de abril de 2010, o decreto estabelece procedimentos para “autorizar e realizar estudos de aproveitamentos de potenciais de energia hidráulica e sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de unidades de conservação” e abre a possibilidade de “autorizar a instalação de sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica em unidades de conservação de uso sustentável”. Na prática, a proposta cria a base jurídica para permitir a instalação de empreendimentos de energia, até mesmo, em unidades de conservação de proteção integral.
Unidades de conservação, segundo a lei que as define, a Lei do SNUC (nº 9.985/00), são áreas criadas justamente com objetivo de conservação, ou seja, um espaço territorial delimitado para fins de preservação, de utilização sustentável, de manejo de uso humano. Nessas unidades, todo e qualquer procedimento deve assegurar a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas. São perímetros reservados para garantir a preservação de espécies da fauna e da flora e a manutenção de recursos naturais.
Mas, enquanto a Lei do SNUC estabelece que essas áreas devem ser protegidas, o governo edita um decreto que abre caminho para que esses mesmos espaços sejam degradados. O que mostra a concepção anacrônica do governo em termos de desenvolvimento. Um tipo de decisão que remete a políticas adotadas pelo país nos tempos de ditadura. Como avalia Sérgio Leitão, “com esse decreto, o governo diz que conservação não tem valor nenhum e o que vale mesmo é fazer obra a qualquer custo e a qualquer preço”.
“O mais grave é que agora a gente tem uma ministra do Meio Ambiente que se comporta como uma espécie de feirante, que, no apagar das luzes, negocia o meio ambiente em troca da sua manutenção no cargo. Quando está no fim de feira, você dá qualquer trocado e leva. É fim de feira, é a xepa. Uma ministra que simplesmente não defende o meio ambiente, é melhor declarar vago o cargo e perguntar onde está o ministro”, alfineta Sérgio Leitão. Izabella Teixeira assinou o decreto junto com o presidente Lula, o ministro de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, e o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo.
Polêmicas políticas à parte, o fato é que o decreto parece “inovar” sem autorização legal. Enquanto a Lei do SNUC, que rege as unidades de conservação, determina a proteção dessas áreas, o decreto – que é uma norma hierarquicamente inferior – abre precedentes para possibilitar a destruição desses espaços. O decreto não fala, por exemplo, na necessidade de se considerar os planos de manejo de cada área. Em contrapartida, torna passível de impacto qualquer tipo de unidade de conservação.
“Por decreto, o governo abre essas mesmas unidades que são para conservação para um tipo de exploração econômica que não é permitido. Quando você faz a instação de um barragem para fins de energia, isso pode ser privadamente. Os lucros são obtidos por meio de concessões que o Estado dá para uma empresa privada. Na prática, o governo está falando que a Constituição não serve em relação às unidades de conservação e que eles vão fazer e acontecer”, defende Leitão.
A norma realmente parece ignorar dispositivos constitucionais. Entre outros, a proposta indica ferir o princípio da precaução. Não se sabe os riscos a que serão submetidas àquelas áreas e as pessoas que nelas estiverem. E como coloca Cristiane Derani, em seu livro Direito Ambiental Econômico, “(…) não se partiria de uma potencialidade de dano, pura e simplesmente, mas se traria à discussão a própria razão da atividade em pauta: a necessidade, o objetivo do que se pretende empreender”.
Certamente a distância entre o que está escrito na legislação e o cumprimento das normas no Brasil nos leva a repensar se as unidades de conservação estão mesmo servindo para preservar o meio ambiente, já que muitas delas estão desqualificadas. Mas, ainda que algumas normas ambientais precisem ser reestruturadas ou efetivamente cumpridas, o próprio governo transformar em letra morta normas vigentes é algo preocupante. Isso nos leva a questionar em que direção estamos indo. Que país do futuro é esse que o poder público está disposto a construir? É difícil acreditar que mesmo diante de tantos indícios, indicando a urgência de se buscar um desenvolvimento menos predador, o governo ainda trabalhe com a hipótese de que meio ambiente é apenas um acessório.
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