Duciran Van Marsen Farena *
Esta não será somente a Copa da corrupção, da exclusão, do apagão, da inflação, dos elefantes brancos… será principalmente a Copa da ilusão. O megaevento se inscreve em um processo histórico em que os nossos governantes, mascarando a realidade da imutabilidade estrutural mediante falsas “rupturas”, sempre venderam, com bastante êxito, um país ilusório: a ilusão de uma monarquia europeia com escravos, a ilusão de uma república sem povo, a ilusão de uma ditadura com Congresso, a ilusão de um BRIC com crescimento econômico pífio…
O Brasil não é só coisa ruim, como adverte Aldo Rebelo, devidamente reconciliado com Jerôme Valcke, o homem dos pontapés. Mas esta Copa resume tudo o que existe de pior na nacionalidade brasileira: a ilusão da projeção geopolítica que o Brasil sempre esteve longe de ter, o fascínio com estrangeiros, o desperdício de dinheiro público, o descaso para com as verdadeiras prioridades, a megalomania que acaba se diluindo na velha e conhecida corrupção. A Copa nada mais é do que a continuação do “Brasil Grande”: soberania desportiva (Copa de 70), soberania territorial (Transamazônica), soberania tecnológica (bomba atômica), etc. Ilusões herdadas pelos antigos adversários do regime militar, que agora parecem reconhecer que havia ali algo de positivo, como em toda a nacionalidade…
Leia também
A Copa do Mundo no Brasil é o ponto culminante da Copa de 70. Os militares já não mais indicam quem deve ser convocado para a seleção, mas uma entidade internacional, notoriamente envolvida com a corrupção, passa a ditar as leis e reescrever a Constituição (afinal de contas, foi o Brasil que “se ofereceu”). E como “se ofereceu”, seu contribuinte deve suportar tudo, inclusive o pagamento das estruturas das festinhas privadas da Fifa, as fan fests, com ingressos vendidos a peso de ouro, e nenhuma vaga para o Bolsa Família. Nunca a situação colonial desta nação esteve tão evidente quanto durante esta Copa, por mais que queiram vender isso como “independência”.
A grandiosidade tinha que se espalhar pelo território nacional, a pretexto do desenvolvimento regional; na prática, desencadeando uma “guerra fiscal” na disputa entre estados pelas sedes, apenas para que a Fifa arrancasse concessões jamais vistas que farão desta Copa a Copa das Copas, em termos de lucros para a entidade.
A Copa de 2014 emula e corteja o regime militar de 1964. O discurso de Aldo, quanto à afirmação da “nacionalidade” deste grandioso torneio e a crítica aos “derrotistas” que buscam “ganhos políticos” torcendo pelo pior, ressuscita o slogan do “ame-o ou deixe-o” e poderia ser transplantado tranquilamente para o regime que os hierarcas de hoje gabam-se de ter combatido no passado.
Aldo Rebelo diz que as grandes “rupturas” do Brasil, como a Independência, a Abolição e a República, nunca foram perdoadas. À parte a discussão se tais fatos tiveram o significado de ruptura que o ministro lhes atribui, seria o caso de perguntar se os brasileiros deveriam também perdoar o Golpe de 1964, ruptura que ele omite em sua lista? Não seria o caso de Aldo buscar o que deu certo durante o regime militar, ao invés de insistir na “fracassomania” e no “complexo de vira lata” nacionais?
Nem precisaria Aldo ir muito longe em seu esforço de Pollyanna. João Havelange propôs a Figueiredo fazer a Copa de 1986 no Brasil. Figueiredo recusou, perguntando: “Você já esteve nas favelas do Rio de Janeiro? Já viu a seca do Nordeste?”
Sem nada o que dizer quanto à economicidade deste torneio, Aldo apela para a “transparência dos gastos públicos”, por meio da qual sabemos que a reforma de um estádio aqui custou mais do que um estádio inteiro construído do zero na África do Sul. Menciona ainda o “sucesso retumbante” da Copa das Confederações. Não seria mais interessante apontar com dados onde houve o prometido aumento de gastos de turistas estrangeiros no Brasil, e a consequente redução do enorme déficit na conta turismo, o crescimento do PIB, o avanço das obras de infraestrutura, enfim, o novo prestígio internacional conquistado pelo Brasil, já que tudo que vimos até agora foi a “firme” posição adotada pelo governo brasileiro nas crises da Ucrânia e da Venezuela?
Aldo acredita que, com a aproximação da festa desportiva, os índices de aprovação da Copa, abalados pela “onda revisora das manifestações de junho”, retornem aos 80%. Quem sabe não retornam também os índices de aprovação do governo que ele integra?
Pelo sim, pelo não, há que se garantir que esta “onda revisora” (não teria sido também uma ruptura?) não venha atrapalhar a festa patriótica. E toda festa patriótica, de 1964 a 2014, exige a aplicação de porrete nos contrários. Mais uma vez a Copa comemora a ditadura. Povo nas ruas, só nos alegres comícios cívico-eleitorais do nosso funcional sistema político, organizados com financiamentos muito parecidos aos das estruturas da Copa.
Povo cantando com amor febril, só o hino nacional nos estádios padrão Fifa. Povo indisciplinado nas ruas, pedindo saúde e educação padrão Fifa, leva pau. E já temos nossa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”: um rojão foi disparado, matando um cinegrafista, o que exige providências urgentes contra a subversão. Quando integrantes de uma torcida organizada mataram da mesma forma um menino na Bolívia não se tratou de subversão externa– muito pelo contrário, a honra nacional exigiu a libertação de nossos heróis, o que foi providenciado pelo Itamaraty. Está no forno uma nova Lei de Segurança Nacional “contra o terrorismo”, para permitir a criminalização de qualquer manifestação popular, de rolezinhos a faixas de protesto nos estádios.
Seu único propósito é sufocar as manifestações de rua que tanto preocupam o governo, e a ditadura temporária que se instalou, com ato institucional e tudo, no país. O emprego das Forças Armadas na segurança dos eventos já está autorizado. O espaço aéreo será fechado horas antes e depois dos jogos – e quem tinha voo marcado? Aguardará horas em nossos patrióticos puxadinhos aeroportuários.
Aldo tem razão. Ame a Copa. Alegre-se com a festa. Recupere os índices de aprovação do governo. Esqueça os protestos. Esqueça a saúde, a educação, a refinaria de Pasadena, o apagão, os tarifaços que virão… Do jeito que as coisas vão, após o jogo final, só nos restará, se ainda for permitido, cantar: “a Copa da ilusão é nossa, com o “Brasil Grande”, não há quem possa”.
* Doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP), é procurador da República na Paraíba, professor de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor do livro recém-lançado A Copa da Corrupção.
Leia mais sobre a Copa de 2014
Nosso jornalismo precisa da sua assinatura
Deixe um comentário