Celso Lungaretti*
“A taça do mundo é nossa
Com o brasileiro não há quem possa
Êh eta esquadrão de ouro
É bom no samba, é bom no couro
O brasileiro lá no estrangeiro
Mostrou o futebol como é que é
Ganhou a taça do mundo
Sambando com a bola no pé
Goool!
(Maugeri, Müller, Sobrinho e Dagô)
A conquista da Copa de 1958, disputada na Suécia, teve um significado imenso para nós, brasileiros: provamos ao mundo e, principalmente, a nós mesmos que poderíamos ser os melhores em alguma coisa, começando a nos livrar do complexo de viralatas.
Até então, víamo-nos como seres inferiores, deitados eternamente em berço esplêndido, sem nunca concretizarmos o nosso potencial. Uma vinheta radiofônica dizia: “Brasil, um país a caminho do seu grande destino”. Que nunca chegava.
Enquanto isso, admirávamos, embasbacados, o progresso dos EUA e as imagens fantasiosas que os norte-americanos projetavam de si próprios via cinema e TV. Isso, claro, só fazia aumentar nossa sensação de inferioridade.
Consolavamo-nos com a ilusão de que seríamos a nação do futuro – uma pífia compensação para o passado inglório e o presente insosso. Era como a promessa católica do paraíso, o sonho que ajudava a suportar uma vida de privações.
O futebol já dera mostras, em 1950, de que poderia se tornar nosso grande motivo de orgulho nacional. No entanto, vacilamos na hora H, e a euforia se transformou em frustração.
Meu pai costumava contar que, depois da fatídica derrota contra o Uruguai, a principal rua do nosso bairro ficou quase deserta, como ele nunca a vira num domingo. Rapazes e moças não tiveram nem ânimo para sair de casa, na noite habitualmente destinada à paquera.
Em 1954, trombamos com o inesquecível esquadrão da Hungria e fomos merecidamente eliminados por Puskas & cia.
Aí, em 1958, receosos de mais uma frustração, não ousávamos acreditar na Seleção Brasileira. Ainda mais depois de duas derrotas vexatórias em amistosos de 1956 (0x3 Itália e 2×4 Inglaterra, apesar dos milagres de são Gilmar) e da eliminatória tortuosa em 1957, quando sofremos o diabo para vencer… o Peru!
É que a Venezuela desistira de disputar uma vaga no Mundial, deixando-nos a tarefa aparentemente facílima de derrotarmos um único e pouco ameaçador adversário.
No entanto, o Peru não morreu na véspera. O jogo em Lima ficou em 1×1 e, no Maracanã, num magro 1×0 – gol de falta de Didi, cobrando com a maestria habitual uma infração da entrada da área.
[Um causo hilário. Excursionando pelo Brasil, o grande Benfica de então enfrentou o Botafogo e seu famoso goleiro Costa Pereira sofreu um gol de falta do Didi exatamente da mesma maneira, a folha seca, com o arremate parecendo que passaria sobre o gol e a bola descendo nos últimos metros. Aí, no Pacaembu, o corinthiano Cláudio repetiu a dose, com seu chute que ia para fora e entortava no finzinho da trajetória. Costa Pereira, que caminhava tranquilamente para bater o tiro de meta, colocou as mãos na cabeça, estupefato, ao ver a redonda balançando suas redes, depois de fazer o que, nas entrevistas, ele qualificaria de “uma curvita”…]
O empate diante da Inglaterra, no segundo jogo das oitavas-de-final (depois da boa estréia contra a Áustria, 3×0) fez aumentar nosso pessimismo. Foram 90 minutos de sofrimento, grudados nos rádios cujo som às vezes fugia, pois as transmissões a longa distância estavam longe de ser perfeitas; quando voltava, era uma agonia tentarmos adivinhar o que sucedera, até constatarmos que não tinhado havido nenhum gol durante o apagão.
Iríamos para o tudo ou nada contra a poderosa URSS, que anunciava ter levantado cientificamente as vulnerabilidades dos futebolistas brasileiros.
Foi quando o técnico Vicente Feola se curvou à pressão dos líderes do elenco e escalou o fenômeno Garrincha… que até então ficara no banco porque um laudo psicológico o dava como pouco mais do que um débil mental. Foi preciso chegarmos à beira do abismo para o técnico desconsiderar os preconceitos dos engravatados.
O resultado foi aquilo que passou à história do futebol como um dos inícios de partida mais avassaladores de uma Copa do Mundo. Imprevisível como uma força da natureza, Garrincha pulverizou a ciência soviética, colocando uma bola na trave, servindo Vavá no primeiro gol e criando sucessivas jogadas agudas. 2×0.
Na quarta-de-final contra o retrancadíssimo Pais de Gales, foi a vez de Pelé dar o ar de sua graça, fazendo o gol salvador. 1×0.
Ele também começou a Copa como reserva (de Mazzola), pois Feola temia que, aos 17 anos, não aguentasse tamanha responsabilidade.
Ledo engano. O escrete melhorou muito com sua escalação a partir do jogo contra a URSS, para deslanchar de vez na semifinal contra a poderosa França de Fontaine (que, com seus 13 gols marcados nos gramados suecos, dificilmente perderá um dia a coroa de maior artilheiro de um só Mundial).
Graças ao idiota Garrincha e ao inexperiente Pelé, o Brasil conseguiu a mais retumbante conquista de uma Copa do Mundo até hoje: com exibições da mais refinada arte futebolística já vista no Planeta Bola, emplacou goleadas de 5×2 tanto na semifinal contra a França quanto na final contra a Suécia.
O nosso povo, que há tanto tempo andava atrás de qualquer alegria, pôde finalmente desabafar: com o brasileiro, não há quem possa!
Pena que as lições foram logo esquecidas. O embasbacamento face às metrópoles e a submissão aos preconceitos dos engravatados voltaram a prevalecer.
E continuamos reprimindo o Macunaíma que temos dentro de nós – tanto que, ao contrário dos argentinos com seu ídolo Maradona, fomos terrivelmente ingratos com nosso herói de duas Copas, deixando Garrincha agonizar no alcoolismo e abandono.
*Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Blogues:
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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