Regina Flávia Campos *
A recém-sancionada Lei nº 13.874/19, já conhecida como Lei da Liberdade Econômica, apresenta-se como importante ferramenta de desburocratização e simplificação do setor empresarial. Voltada para a aplicação e interpretação de diversas áreas do direito, a norma em questão traz importantes impactos na seara tributária, sobretudo no que se refere à força dos precedentes administrativos e judiciais perante a recorribilidade fiscal, à desconsideração da personalidade jurídica das empresas, ao dever de guarda e manutenção de documentos fiscais aplicável aos contribuintes e ao fornecimento de informações previdenciárias.
Em se tratando da desconsideração da personalidade jurídica das empresas, nova legislação promoveu um sensível enrijecimento interpretativo no que se refere aos elementos caracterizadores do uso abusivo da pessoa jurídica. Após a redação trazida pela Lei nº 13.874/19, o art. 50 do Código Civil trouxe a conceituação jurídica do que deve ser entendido por desvio de finalidade e confusão patrimonial para fins de redirecionamento das obrigações tributárias das empresas para os sócios e administradores. Referida alteração confere maior segurança jurídica aos contribuintes, que podem se valer de critérios objetivos para se defenderem contra redirecionamentos de cobranças abusivos intentados pelas autoridades fiscais a partir de interpretações discricionárias e arbitrárias.
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Além disso, mesmo na hipótese da efetiva ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica, a extensão das obrigações para os sócios e administradores deverão atingir apenas aqueles que se beneficiaram direta ou indiretamente dos abusos. A fixação do nexo de beneficiamento para determinar a responsabilização de sócios e administradores poderá ser arguido por contribuintes que, sem controle acionário ou significativa participação em determinado empreendimento, são chamados a responder por dívidas assumidas pelas pessoas jurídicas pelo simples fato de terem assumido a condição de sócio, sem terem qualquer proveito pelas ações perpetradas.
Outra alteração que poderá impactar positivamente os contribuintes diz respeito à guarda e manutenção de documentos fiscais. Mediante regulamentação por ato da autoridade competente, os contribuintes poderão manter tais documentos em meio digital, os quais se equipararão a documentos físicos originais para fins fiscais. Essa alteração tem o potencial de reduzir os custos de manutenção e armazenamento de papéis, além de diminuir da possibilidade de perda de documentos essenciais à comprovação do cumprimento de obrigações fiscais pelo período de prescrição de créditos tributários e decadência do direito fazendário de realizar cobranças fiscais.
Em referência às possibilidades de dispensa recursal aplicáveis à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) nas discussões de natureza fiscal, a norma sob análise não promoveu alterações tão significativas no canário atual. Isso porque, desde 2016 já vigorava a Portaria PGFN nº 502, a qual amplia o rol hipóteses de dispensa de apresentação de contestação, oferecimento de contrarrazões a apresentação de recursos nos mesmos termos em que trazidos pela Lei nº 13.874/19. Dessa forma, antes da promulgação da Lei da Liberdade Econômica a PGFN já dispensava a manutenção de discussões judiciais e administrativas “perdidas” em relação a tema: (i) objeto de parecer vigente do procurador-geral da Fazenda Nacional favorável ao contribuinte; (ii) objeto de súmula ou parecer do advogado-geral da União favorável ao particular; (iv) objeto de súmula vinculante do STF, (v) objeto de controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e (vi) objeto de controle difuso de constitucionalidade com execução suspensa pelo Senado Federal.
Não se desconsidera o fato de que a inclusão dessas possibilidades em lei traz maior perenidade e segurança jurídica para os contribuintes e contribui para reduzir a perpetuação de discussões administrativas e/ou judiciais inócuas (sob o ponto de vista legal) e extenuantes (na ótica econômica). Entretanto, a previsão legal não se mostrou tão inovadora quanto a esse ponto.
A despeito disso, reconhece-se que a legislação em questão avançou no que se refere à prevenção de instauração de litígios indesejados. Ao permitir a não constituição de créditos tributários relacionados aos temas acima descritos (observados os critérios legais para tal dispensa), a Lei nº 13.874/19 confere um tratamento mais moderno ao alcance dos precedentes administrativos e judiciais.
No que se refere ao cumprimento de obrigações acessórias de cunho fiscal previdenciário, o art. 16 da Lei da Liberdade Econômica previu a substituição do Sistema de Escrituração Digital de Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial) e do Livro de Controle de Produção e Estoque (Bloco K) por um sistema mais simples de escrituração digital.
É claro que a concretização dos avanços aqui identificados dependerá das respectivas regulamentações, da observância dos preceitos trazidos por parte das autoridades fiscais, bem como do tratamento jurisprudencial a ser conferido aos temas. No entanto, parece que, de fato, estamos no caminho de uma maior desburocratização do nosso ainda caótico sistema tributário.
* Mestre em Direito Tributário pela UFMG, advogada tributarista sênior do ASBZ Advogados.
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