Nesses últimos dois meses vimos emergir um caloroso e interessante debate sobre a inserção da população negra no mercado de trabalho. De um lado, uma prestigiada empresa de varejo, com atuação nacional, anunciou que iria, por decisão própria, conduzir processo seletivo para seu programa de treinee 2021 considerando apenas candidaturas negras.
As reações de aplauso e condenação partiram de todos os lados. Até mesmo um defensor público da União considerou ser seu dever abrir processo contra a empresa varejista, alegando violação de direitos coletivos e prática de “racismo reverso”. Diante desses argumentos, coube ao Ministério Público do Trabalho (MTP) a defesa da ação empreendida pela empresa, incluindo ressaltar a legitimidade de ações afirmativas para superação de desigualdades e discriminações históricas.
Aguardamos, nesse caso, as cenas dos próximos capítulos, mas louva-se, desde já, a decisão da rede de varejo em não recuar em sua decisão e argumentar que a medida está alinhada a alguns de seus valores. No contexto brasileiro, essa é uma decisão corajosa, mas também é verdade que ela guarda particular relação com a realidade: a empresa pode fazer isso porque os indicadores de escolaridade da população negra e jovem permitem, e o perfil de consumo dessa parcela da população brasileira exibe múltiplos sinais para sustentar uma medida como essa. Então, bingo!
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No outro lado do palco, ou abaixo dele, uma executiva de instituição financeira, fundada em 2013, concede entrevista a um programa de TV com considerável índice de audiência e seguidores em redes sociais. No geral, a entrevista tinha quase tudo para ser um sucesso, mas eis que a executiva patina na abordagem do mesmo assunto: a inserção da população negra no mercado de trabalho.
Observando com atenção os argumentos apresentados logo no início da entrevista, já era possível apostar que haveria algo que, muitas vezes, definimos como “fadiga de material”. Ao tratar da inserção das mulheres no competitivo mundo dos negócios e, particularmente, do mercado financeiro já havia elementos de sobra para acreditar que o trem ia sair dos trilhos no quesito diversidade em ambientes corporativos, e não deu outra.
O trem saiu dos trilhos ao concluir que nos processos de recrutamento e seleção de sua instituição, no tocante às candidaturas negras, “não dá pra gente, também, nivelar por baixo”. Indo mais além em sua avaliação, ela dirá: “Não adianta a gente colocar alguém pra dentro e depois não vai ter condições de trabalhar com as equipes que a gente tem, de se desenvolver, de avançar na sua carreira e depois não vai ser bem avaliado. Aí não estamos resolvendo um problema, estamos criando outro, né?”.
Declarações como essas alimentam certo “senso comum” que, na essência, corroboram para que práticas de discriminação racial permaneçam intactas nos processos de recrutamento e seleção levados a cabo no mercado de trabalho. É particularmente verdade que empregadores, sejam órgãos públicos ou organizações privadas, possuem a prerrogativa de recrutar profissionais mais adequados às suas necessidades.
Assim, e não por acaso, as descrições de vagas de emprego são repletas de condicionalidades. Mas nenhum empregador pode se sobrepor ao artigo 5º da Constituição Brasileira. Nessa seara, exige-se que esse artigo seja cumprido com o máximo de transparência e integridade. E, na atualidade, a agenda de debate inclui, com veemência, contestar condicionalidades abusivas e discriminatórias em várias dimensões. As novas gerações estão dando sinais objetivos de repúdio às práticas discriminatórias desde a porta de entrada de qualquer estabelecimento e isso é algo muito positivo.
Mas no que diz respeito a questão racial e a inserção da população negra no mercado de trabalho, há muito mais a ser dito, ou ao menos, colocado em pauta para o debate. Por aqui existe uma generalizada, e estatisticamente infundada, avaliação positiva sobre a qualificação profissional e escolaridade da população branca.
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Contrariando essa compreensão, é preciso mencionar que, segundo a Pesquisa por Amostra por Domicílios (Pnad), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, entre as pessoas com mais de 25 anos apenas 20,6 milhões possuíam nível de graduação superior completo – o que corresponde a 15,7% da população brasileira com idade superior a 25 anos (131,6 milhões de pessoas). Entre a população branca, com idade superior a 25 anos e nível de graduação completo, temos um total de 13,7 milhões de pessoas – ou22,9% da população branca nessa faixa etária. Ou seja, os indicadores de escolaridade da população branca não deveriam ser comemorados como um padrão de excelência.
Se é verdade que os atuais indicadores da população negra com idade superior a 25 anos e nível de graduação são inferiores ao da população branca registra apenas 6,5 milhões de indivíduos negros (mulheres e homens), vale registrar também que esse grupo já representa 31,4% da população brasileira com nível superior completo. A fila está andando.
Como histórico, não podemos deixar de mencionar que esses indicadores têm tudo a ver com o aumento das múltiplas políticas de democratização do acesso ao ensino superior público e privado empreendidas a partir de 2003. É isso que detalha o acurado e instigante artigo de Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea, em “Ação afirmativa e população negra na educação superior: acesso e perfil discente” (2020).
Tatiana não deixa de sublinhar que a desigualdade racial ainda permanece consistentemente presente no ensino superior brasileiro, e que a sub-representação da população negra nesse nível de formação é uma realidade. No entanto, ela também não deixa de destacar, por exemplo, que as mulheres negras já representam o segundo maior grupo de estudantes de nível superior, praticamente alinhadas com as mulheres brancas.
Segundo o seu artigo, para o ano de 2017, existe uma clara tendência de mudança de perfil dos ingressos no ensino superior. “Dos ingressantes nesse ano, 29,3% foram mulheres negras, seguidas de 28% de mulheres brancas e 22,4% e 19,6% de homens brancos e negros, respectivamente.” Ou seja, não é possível desconsiderar algumas mudanças estruturais no debate sobre habilidades, competências e inserção no mercado de trabalho. As “coisas” estão mudando e essas mudanças têm ocorrido como resultado de lutas contra a discriminação racial.
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Talvez a nossa executiva do mercado financeiro não esteja familiarizada com esses números, realizações, conquistas e avanços. No entanto, faria sentido especular que, em mais amplo sentido, a sua atual cartela de clientes poderia ser ampliada, justamente, como resultado dessas mudanças estruturais na sociedade brasileira. Ou seja, enfrentar o racismo estrutural é, ao mesmo tempo, ampliar oportunidades, realizar cidadania e “criar bons negócios”.
Também seria adequado que executivos e dirigentes (mulheres e homens) buscassem informações como essas para sustentar seus processos de tomada de decisão, abandonar o “eu acho” para o “eu constatei isso baseado em X, Y e Z indicadores de resultado”. Uma atitude como essa seria um sinal de “não nivelar por baixo”. Nossa juventude, especialmente a juventude negra, está buscando algo bem diferente e, na atualidade, parece fazer sentido que empregadores façam o mesmo. E, sim, dirigentes inapropriados e fora do seu tempo não são cancelados por acaso, são cancelados porque um amplo público tem ao seu dispor gente mais qualificada para ouvir, se inspirar, conhecer, admirar e, nessa pegada, a turma é, digamos, “cruel” só nivela por cima. E, convenhamos, estão certos, não é mesmo?
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