Sonia Fleury e equipe*
A persistência de uma crise econômica prolongada se acentuou com a chegada da pandemia de covid-19, tanto pela desorganização que ela provocou em todas as sociedades como pela incapacidade do governo federal em coordenar medidas de enfrentamento em colaboração com os entes subnacionais. Em um contexto de austeridade fiscal, constitucionalizada pela EC n° 95/2016, o Brasil observou, no último ano, o aumento da taxa de desemprego, de 11,6% para 14,4%, o que representou um adicional de 2,1 milhões de pessoas desempregadas.
O desemprego aumentou em praticamente todas as categorias, porém, em uma economia que já vinha atirando milhões de trabalhadores na informalidade, a pandemia veio acentuar a extrema vulnerabilidade desses trabalhadores, que não podem parar de trabalhar porque não têm direitos trabalhistas que os possam amparar em situações de risco, como o seguro-desemprego, FGTS, entre outros. O desemprego e o fim do auxílio emergencial contribuíram para que o país atingisse o nível de pobreza de dez anos atrás – 12,8% da população passou a viver com menos de R$ 246,00 ao mês, linha de pobreza extrema calculada pela FGV Social.
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É nesse contexto que um grupo de empresários e economistas publicou, depois de um ano de pandemia, uma carta aberta que pede medidas mais eficazes voltadas ao combate à pandemia e endossa o Programa de Responsabilidade Social para reformar o sistema de proteção social brasileiro. As diretrizes desse programa estão previstas no Projeto de Lei n° 5.343/ 2020, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), cujo objetivo é “oferecer assistência a famílias em situação de vulnerabilidade e aos trabalhadores informais sujeitos a elevada volatilidade de seus rendimentos”. Seria louvável que as elites econômicas se preocupassem com os mais pobres e buscassem soluções para eliminar a pobreza e reduzir os riscos dos trabalhadores.
No entanto, uma leitura atenta dos documentos relacionados à proposta indica os limites para essa reforma, suas debilidades conceituais e instrumentais e também aqueles que ganhariam caso fosse aprovada. Senão vejamos:
1 – A proposta é retrógrada
PublicidadeLideranças políticas e empresariais de todo o mundo discutem as saídas da crise a partir de um sistema tributário que taxe a riqueza, cada vez mais concentrada, e através de políticas públicas de investimento e proteção social induza a geração de emprego e a distribuição de renda. Em outras palavras, não há saída para o combate à pobreza que ignore a desigualdade, pois são dois lados da mesma moeda. Atuar nas duas pontas requer um sistema tributário altamente progressista e políticas redistributivas e de promoção social. Ou seja, requerem um Estado eficiente, com capacidade de prover serviços e políticas inclusivas.
A proposta em discussão assume uma posição oposta. Ignorando que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, buscando assim resolver o problema da pobreza com a eliminação de benefícios dos trabalhadores no mercado formal para custear o programa de inclusão dos informais. Esse projeto, portanto, pretende acabar com a pobreza extrema no país tornando mais pobres os “menos pobres”, particularmente aqueles que compõem a franja mais vulnerável do mercado formal de trabalho, por meio de uma redistribuição de renda horizontal. Sem alterar a estrutura tributária pretende-se distribuir dos menos pobres para os mais pobres, mantendo teto de gastos e os cortes orçamentários que provocam o desmantelamento dos serviços e das instituições públicas responsáveis pela proteção social. Pretendem enfrentar a pobreza com a redução do papel do Estado.
Não havendo novos recursos financeiros disponíveis, a proposta da reforma se resume a reestruturar os “benefícios assistenciais” que, segundo seus autores, foram criados com “características de benefícios trabalhistas”. Os recursos oriundos da extinção do abono salarial, do seguro defeso e do salário-família, benefícios trabalhistas voltados a empregados formais de baixa renda, seriam utilizados para encorpar o orçamento da assistência social. Outros benefícios trabalhistas, como seguro-desemprego, salário-maternidade, auxílio-reclusão, aposentadoria rural e BPC, também são alvos de ataques em outros documentos associados a esse projeto, como previsão de “medidas fiscais para redução de despesas”.
2- A proposta é preconceituosa
Partindo de julgamentos morais em relação aos pobres, que são vistos como dispostos a enganar o Estado, fornecendo dados falsos para tirar vantagens dos benefícios oferecidos, o programa cria mecanismos de controle da informação e dos trabalhadores.
O instrumento do CadÚnico, sistema de informações que é a base da gestão do Sistema Único de Assistência Social (Suas), foi sendo aprimorado durante anos e certamente poderá ser melhorado. No entanto, sua concepção deveria ser mantida, pois ele não é um instrumento de controle e punição, mas um mecanismo de acolhimento e inclusão daqueles que necessitam dos serviços assistenciais para incluí-los na comunidade de cidadãos, possuidores de direitos sociais e acesso aos serviços públicos.
Ao estender o CadÚnico a todos os trabalhadores – formais, informais, beneficiários de programas de assistência como o Bolsa Família –, pretende-se ter um controle informacional e talvez político e mercadológico sobre a totalidade da classe trabalhadora, de forma centralizada. Causa espécie esse tipo de pretensão panóptica, que não encontra paralelo em nenhum cadastro para outras classes sociais.
A perseguição dos dados verdadeiros termina levando o poder municipal a ser transformado de gestor do sistema descentralizado de assistência social em um controlador dos beneficiários, através de visitas incertas que possam flagrar aqueles que forneceram informações errôneas, recebendo para tanto uma compensação monetária. Essa função policialesca não existe nem mesmo na Receita Federal, e sua defesa só se justifica pelo preconceito em relação à moral e ao caráter dos pobres.
3 – A proposta é equivocada
Desde o trabalho seminal do economista e Prêmio Nobel Amartya Sen, demonstrando que a pobreza deve ser vista como privação de capacidades, o entendimento do caráter multidimensional das situações de pobreza tem sido reconhecido, bem como evidenciado o equívoco da sua redução exclusivamente à falta de renda. A proposta em análise se equivoca ao monetarizar a pobreza, absolutizando a estratégia de enfrentamento através da renda. Assim, desconsidera que os serviços e sistemas de saúde, educação e assistência são fundamentais para a promoção social, associados a uma renda digna de cidadania.
Por isso os sistemas que garantem os direitos sociais são federativos, envolvendo competências compartilhadas pelos três níveis de governo, com imprescindível capilaridade em todo território nacional, de maneira a permitir o acesso dos cidadãos. A monetarização da pobreza desconhece a necessidade de melhorar a prestação desses serviços que asseguram os direitos sociais supondo, por exemplo, atuar na melhoria da educação por meio do benefício de uma poupança de valor irrisório, sem considerar a melhoria do sistema educacional.
Não se trata de um sistema de transferência de renda que se proponha a fortalecer o sistema de assistência, com sua rede federativa composta por centros assistenciais que implementam políticas em todo o país. A pretensão de eliminar a pobreza com a transferência de renda parece considerar que o próprio Suas possa ser eliminado, já que a solução ignora a rede e as política atuais. De um instrumento de busca ativa para a inclusão em programas sociais e expansão de direitos, o CadÚnico torna-se um instrumento de controle da flutuação da renda das famílias, voltado para ajustes no valor ou exclusão de benefícios. Ao ampliar os agentes responsáveis pelo cadastramento e atualização cadastral das famílias, incluindo sistemas online e aplicativos, exclui desse processo os centros de referência de assistência social, atores importantes para garantir o acesso dessas pessoas a outros serviços no âmbito do Suas. Dessa forma, desorganiza o atual sistema de proteção social, reduzindo-o à transferência de renda.
O pior é que a aderência irrestrita à manutenção do teto de gastos torna a própria proposta de transferência de renda, em valores muito baixos, altamente imprevisível. Em vários trechos do projeto de lei, é facultado ao Poder Executivo alterar o critério de elegibilidade (renda familiar mensal de R$125,00 por pessoa) e os valores de referência para cálculo dos benefícios assistenciais previstos, de modo a compatibilizar com a dotação orçamentária anual. Dessa forma, o governo tem a discricionariedade de reduzir a população a ser atendida ou o valor dos benefícios, e, em uma situação extrema, até mesmo de se eximir de operacionalizar o pagamento desses valores, justificada com base na necessidade de ajustes orçamentários.
4 – A proposta é financista e irresponsável
A proposição de criação de uma Poupança Seguro Família (PSF) para os trabalhadores do mercado informal, ao lado de um Bolsa Família renomeado para cobertura dos muito pobres, parece ser a grande novidade da proposta. É meritória a busca de políticas que incluam os trabalhadores informais no sistema de proteção social, o que em todo mundo tem dado lugar à discussão e implementação de diferentes formatos da renda básica de cidadania. Na proposta em discussão, a vulnerabilidade do mercado informal não é discutida em seu componente estrutural, atribuindo-se os riscos exclusivamente aos indivíduos e famílias. Para enfrentar as flutuações de renda busca-se criar, com recursos retirados dos benefícios para trabalhadores do mercado formal, um seguro que deverá ser capitalizado por meio da compra de títulos do Tesouro Nacional. Com restrições severas ao acesso do trabalhador a esses recursos (duas vezes por ano e com custos administrativos), a proposta chega ao âmago de sua pretensão: transformar os pobres em sócios da dívida pública, empreendedores no mercado financeiro, só faltando dizer que tudo isso será feito através das instituições financeiras privadas. Afinal, o Estado já participará com o lugar que lhe reserva o mercado financeiro: devedor e pagador de juros.
Não tendo sido discutida com qualquer ator responsável – profissional, gestor, acadêmico ou beneficiário do sistema assistencial –, a proposta revela seu cunho tecnocrático-autoritário, visando desmantelar uma das mais importantes conquistas da Constituição Federal de 1988 que foi a transformação da assistência social em um direito a um benefício que não pode ser menor que o salário mínimo, patamar civilizatório de quem se propôs a construir uma sociedade democrática, inclusiva e menos desigual!
Trata-se, portanto, de uma proposta irresponsável que rompe com a concepção de direito à assistência. Vulnerabiliza os beneficiários, já que não lhes assegura direitos e nem valores. Destitui trabalhadores de direitos adquiridos. Faz uma distribuição dos menos pobres para os mais pobres, ignorando a abissal desigualdade de renda no país. E transfere recursos públicos para o mercado financeiro, a título de responsabilidade social.
* Texto de autoria do grupo de pesquisa “Futuros da Proteção Social”, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz: Sonia Fleury (coordenadora); Arnaldo Lanzara, Carlos Eduardo Pinho, Fernanda Pernasetti, Lenaura Lobato, Luciene Burlandy, Monica Senna, Ronaldo Teodoro e Virginia Fava (pesquisadores).
[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Trimestre Móvel dez-fev/2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3086/pnacm_2021_fev.pdf
[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/01/brasil-comeca-2021-com-mais-miseraveis-que-ha-uma-decada.shtml
[3] Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras, Rio de Janeiro. 2000
> Governo é obrigado a prover renda para os mais pobres, decide STF
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