No Brasil de Bolsonaro, o negacionismo tornou-se método de atuação política. No mesmo dia em que o Brasil e o mundo se indignavam com o assassinato por asfixia do autônomo João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, Bolsonaro, numa postagem no Twitter, se disse “daltônico”. Para ele, todos os brasileiros têm a mesma cor – verde e amarelo. Não sei você, leitor, mas eu não sou verde. Nem sou amarelo. Bolsonaro negou que exista racismo no Brasil, tal como o negro racista nomeado por ele próprio para dirigir a Fundação Palmares. Bolsonaro teve a coragem de dizer que o racismo está num patamar inferior ao de outras questões como a corrupção (que, aliás, campeia na própria família dele). Na véspera, o vice Hamilton Mourão também negou a existência do racismo no Brasil. “Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil, não existe aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade: não tem racismo”. E ainda teve a cara de pau de dizer que os seguranças que mataram o autônomo eram, apenas, “despreparados”. Meodeos…
Leia também
>Senado tenta votar nova Lei de Falências às vésperas do segundo turno
Esta não é a primeira nem será a última vez que no governo Bolsonaro o negacionismo é usado em todas as áreas para legitimar a iniquidade, a irresponsabilidade e a truculência. O negacionismo climático, segundo o qual não existe aquecimento global, é uma delas. Na linha trilhada pelo bufão Donald Trump, o governo brasileiro tenta, de todas as maneiras, negar as queimadas ilegais na Amazônia. Em vez de combatê-las, monta um roteiro turístico para levar incautos por uma rota onde, evidentemente, não haverá devastação para se ver. O próprio Bolsonaro chegou a afirmar que a culpa pelo desmatamento é dos índios e caboclos, omitindo propositalmente a ação criminosa de fazendeiros e madeireiros, que majoritariamente o apoiam, esses, sim, diariamente identificados como os grandes responsáveis pela devastação do bioma.
Bolsonaro também embarcou perigosamente num outro negacionismo: o do holocausto. Numa visita a Jerusalém, teve a audácia de dizer que os crimes contra os judeus, que ceifaram 6 milhões de vidas, eram “perdoáveis”. E emendou com uma das mais perfeitas imbecilidades já pronunciadas por um chefe de estado: disse que o nazismo era… de esquerda!
Negacionistas condenaram Charles Darwin pelos estudos do evolucionismo, considerados anti-bíblicos. Por aqui, bolsonaristas tapados tentam emplacar a visão pré-medieval de que a Terra é plana, tal como alguns anos atrás alguns energúmenos tentaram negar a existência da AIDS e de seus efeitos devastadores. Por aqui, Bolsonaro e sua tropa insistem em não reconhecer o que a ciência vem demonstrando diariamente: as dimensões catastróficas da pandemia do coronavírus, mesmo tropeçando em mais de 129 mil caixões mortuários só no Brasil, número que vem crescendo assustadoramente a cada dia. E que tende a aumentar com a chegada da segunda onda, que ele classifica cretinamente de “conversinha”.
Como o negacionismo funciona
É do ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebells, já citado por aqui, a frase segundo a qual “basta repetir uma mentira mil vez para ela virar verdade”. Psicólogos chamam esse truque de “ilusão da verdade”. O negacionismo tem um método. O autor precisa negar, negar e negar a verdade. Até que não haja mais questionamentos. Um exemplo recentíssimo: neste domingo, Bolsonaro voltou a dizer que sofre “ataques injustificados de nações menos competitivas e menos sustentáveis” e que seu governo vai “continuar protegendo” os biomas brasileiros. Tripla mentira: 1) ele não está sob ataque, e sim sob críticas, todas bem fundamentadas, bastando ver os números da devastação a partir dos dados dos satélites; 2) as críticas não vêm de nações menos competitivas, e sim de dirigentes de países desenvolvidos e com uma visão ambiental moderna e consequente e, 3) ele não vai “continuar a proteger” nada porque ninguém continua o que não começou. Caso contrário, por exemplo, já teria demitido seu ministro Contra o Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Percebem o truque? É preciso mentir, mentir, mentir e encadear uma mentira na outra. Até que alguém acredite mesmo que ele protege os biomas brasileiros e, coitado, está sob ataque de outros países. O negacionismo, ao longo da história, tem-se se revelado prática muito comum entre fanáticos políticos e/ou religiosos. É um mecanismo de defesa contra pensamentos que possam perturbar as crenças estabelecidas. Basta repetir a mentira. Um dia ela vira verdade… Ele se serve de uma característica do cérebro humano: a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Os negacionistas não aceitam nada que vá contra suas crenças, nem mesmo as conclusões da ciência. Entre nós temos uma frase-resumo disso: “o pior cego é o que não quer ver”. Faça você mesmo um teste com um bolsonarista. Mostre a ele Bolsonaro dizendo uma frase contra a existência do racismo. No máximo, vai ouvir algo como: “Ah, liga não, é o jeito dele falar…” Ou simplesmente: “Se ele disse, está certo!”
Negar o racismo é tão criminoso quanto ser racista
Passa da hora de o racismo começar a ser considerado um crime tão violento como a corrupção, os ataques à vida, contra o patrimônio ambiental e o patrimônio público. O racismo estrutural, ou seja, aquele que se firmou no inconsciente coletivo desde que o primeiro escravo desembarcou de um navio negreiro, continua a ser praticado diariamente pelo Brasil. De vez em quando, crimes terríveis como o dos seguranças do shopping em Porto Alegre vêm à tona. São apenas a ponta de um iceberg. Quantos negros são massacrados por dia no Brasil, sobretudo na ação policial, sem que esses fatos venham a publico?
Chega de negacionismo. O racismo existe, e são criminosos tanto Bolsonaro quanto o general Mourão e todos os que se negam a reconhecer essa evidência. Essa postura implica conivência com os praticantes desses crimes. Funciona como incentivo. Conivência com criminosos é ato criminoso, sim. O racismo tem sido responsável por milhares de mortes todos os anos, além da segregação educacional, social e profissional de milhões de pessoas. Não dá mais pra tratar o assunto por outro nome. Comete crime, sim, quem nega o racismo e, com isso, ajuda a perpetuar a iniquidade que essa praga causa aos negros de todo o país. Ah, antes que me esqueça: Alô, general Mourão! Negro é negro, viu? A expressão “pessoa de cor” que o senhor usou em relação aos negros é um eufemismo racista. Porque, “de cor”, somos todos os humanos, de todas as cores, em todo o mundo. Portanto, negro é negro e ponto final. A diferença é que as pessoas de cor negra – os negros – são diariamente estigmatizadas e massacradas, como aconteceu com aquele trabalhador brasileiro violentamente assassinado no shopping. Já entre os brancos a violência é muito, muitíssimo menor. Sinal de que há um tratamento assimétrico entre negros e brancos no Brasil. Um tratamento racista. Portanto, ou o senhor se retrata pelo uso da expressão ou compactua com a chacina diária dos negros brasileiros.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário