Em 7 de agosto de 2001 a então deputada federal Iara Bernardi (PT-SP) apresentou o Projeto de Lei 5003/2001. No Senado, ficou conhecido como PL 122/2006, tramitou por lá quase dez anos. Quinze anos de tramitação, ao todo, e foi arquivado. Pela legislação, projetos que tramitam por duas legislaturas seguidas sem aprovação vão automaticamente para o limbo. Em maio de 2012 e dezembro de 2013, respectivamente, a ABGLT e o Partido Popular Socialista recorreram ao STF para tornar crime a discriminação contra pessoas LGBT.
O antigo PL 122/06 alterava a Lei 7.716/89, que trata dos crimes raciais. Equiparava a discriminação contra pessoas LGBT ao crime de racismo. Em suas várias redações em busca de um texto de consenso chegou a propor, inclusive, alterações no Código Penal (arts. 61, 121, 129, 140 e 286), qualificando crimes em decorrência da condição de a vítima ser LGBT, como ocorre com o crime de feminicídio, entre outros. O consenso não houve porque não havia – e não há – interesse majoritário no Congresso para tornar isso crime. Não havia antes, há muito menos agora.
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A bancada evangélica, terrorista em relação aos direitos humanos por concepção desde o embrião e em grande parte, corrupta por pragmatismo dogmático-religioso, sempre vetou. Lula não quis comprar essa briga, Dilma não quis comprar nenhuma, Temer dela se sustentou e Bozo a tem como sócia majoritária do pleito de outubro. Em 2010 eram 73 deputados, em 2018 são 84. Os números sempre expressivos e relevantes na relação Executivo-Legislativo agora representam ações com direito a voto na assembleia do caos que se tornou o Planalto.
Todo esse introito para dizer o óbvio ululante. Se o Congresso Nacional não criminalizou antes, não irá fazê-lo agora.
Por isso pedem o PPS e a ABGLT ao STF para suprir a omissão legislativa. “Qual?” pergunta o leitor. Basicamente aquela do art. 5º, LXI “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;”. Ora, não é preciso grande esforço intelectual para considerar, por óbvio, que a violência que ceifa a vida e a discriminação que ceifa oportunidades violam os mais fundamentais direitos e liberdades sobre os quais se fundam a nossa sociedade, como o direito à vida, à igualdade, à dignidade etc etc etc.
O PPS escolheu o caminho da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), a ABGLT pegou o curso do mandado de injunção. Depois da ADPF 527, na qual discute o direito de travestis e transexuais cumprirem pena em presídio que corresponda à sua identidade de gênero, a ABGLT poderia também seguir o curso da ADO, junto com os outros legitimados do artigo 103 da Constituição Federal, conforme decisão correta e acertada do ministro Roberto Barroso que ampliou o conceito de entidade de “classe” do inciso IX daquele artigo. Mas isso é outro ponto.
Qual o sentido desse juridiquês? É para dizer que, de certa maneira, os efeitos podem ser distintos, em um ou outro caminho. Na ADO, em regra, por conta da expressa previsão do parágrafo 2º do artigo 103 da Constituição, não há muito o que fazer além de declarar a omissão. Diz o texto constitucional: “art. 103 § 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Pela leitura estrita da Constituição, no âmbito da ADO o STF apenas poderia declarar a omissão e cientificar o Congresso desse reconhecimento. Esse é o entendimento hoje prevalecente no STF: “em sede de controle abstrato, ao declarar a situação de inconstitucionalidade por omissão, [a Corte] não poderá, em hipótese alguma, substituindo-se ao órgão estatal inadimplente, expedir provimentos normativos que atuem como sucedâneo da norma reclamada pela Constituição, mas não editada – ou editada de maneira incompleta – pelo Poder Público”. (decisão monocrática do Min. Celso de Mello na ADIN 1.484/DF). Inês é morta.
Há um outro entendimento em grande parte da doutrina jurídica, por gente da cepa de Luiz Guilherme Marinoni, Dirley da Cunha Junior e, pasmem, do ex-presidente e constitucionalista Michel Temer, lá nos idos de 2002, de que os efeitos desse controle é realizar a vontade constitucional, ou seja, suprir a lacuna e não ficar no blá-blá-blá. Por essa compreensão, o STF poderia usar do recurso disponível no artigo 12-F da Lei 9868/99 para dar em tutela provisória, ou seja, de imediato, uma decisão equiparando as condutas discriminatórias contra LGBT (não vou usar homo-lesbo-trans-bi-hemo-wicca-fobicas, galera) àquelas previstas na lei do racismo, manter isso no julgamento final – que pode durar anos se algum ministro pedir “vista” – até que o Congresso legisle sobre o tema.
Quase no mesmo sentido, no MI 4733 as possibilidades são maiores. Isso porque o STF tem proferido decisões no âmbito desse remédio constitucional que não são meramente declaratórias, como no caso da ausência de lei complementar sobre aposentadoria prevista no art. 40 § 4º da CF (MI 721/DF/2007) e do direito à greve dos servidores públicos previsto no art. 37, VII da CF (MI 712/PA/2008). A Lei do Mandado de Injunção (13.300/16) prevê esse caminho em seu artigo 8º, para que o Judiciário determine prazo razoável para a edição da norma e para estabelecer condições para o exercício dos direitos e liberdades por ela tutelados até a sua edição (bingo!).
Esse é um dos cenários para o desfecho do caso, consoante o voto do decano ministro Celso de Mello. Ao concluir seu voto na quarta-feira, 20 de fevereiro, o ministro reconheceu o estado de inconstitucionalidade existente na não edição de lei sobre o tema, conforme mandamento do art. 5º, XLI da CF. Votou para que, até que seja editada lei sobre o tema, a discriminação contra LGBT seja enquadrada no tipo penal da Lei do Racismo (7716/89) como, aliás, foi feito pela suprema corte no caso do antissemitismo no julgamento do Habeas Corpus 82424.
Os ministros do STF, contudo, têm tino político. Penso, por isso, ser difícil a corte aprovar um tema tão sensível para o Congresso do fim-do-mundo e o governo Bozo. É bala na agulha que o STF não tem. Toffoli já deu mostras de querer evitar uma guerra institucional e a decisão na ADO 26 e no MI 4733 podem ser o gatilho disso.
Além de apresentar, de forma muito breve, o cenário legal a respeito do tema, quero aqui também propor uma reflexão.
A respeito de diversos problemas que poderiam ter uma solução tentada no âmbito legislativo, acostumamo-nos com a morosidade e inércia deliberadas do Congresso Nacional. As recentes crises políticas, desde aquele furdunço das manifestações de 2013, têm cada vez mais desacreditado as instituições essencialmente políticas/eletivas. No bojo desse processo de desacreditação da política como forma de resposta aos mais variados problemas coletivos, instituições como as Forças Armadas e o Judiciário têm sobressaído como repositório dos anseios populares.
Em 2016 o STF julgava a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil, aprovado em 2002. Em 2011 o STF reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo na ADI 4277. Em 2016 o STF, sem declarar a inconstitucionalidade, afastou a aplicação do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), para permitir a execução da pena privativa de liberdade após condenação em segunda instância. Em todos esses casos, uma situação em comum: o STF estava legislando. Talvez no reconhecimento da união estável não, pois não estava eliminando ou criando normas, apenas dando interpretação conforme todo o arcabouço constitucional ao escopo do instituto da União Estável, embora existam divergências relevantes a considerar. No caso da permissão para a execução provisória da pena, defensores de direitos humanos chiaram. No reconhecimento da união estável, aplaudiram.
De forma semelhante, muitos juristas progressistas, entidades e movimentos sociais agora regozijam-se com a possibilidade de equiparação da homofobia ao racismo por via judicial. Não é possível, meus caros, aplaudir um instrumento quando ele amplia a democracia e as liberdades individuais e criticá-lo quando ele suprime direitos. Não dá pra usar a lógica de reconhecer apenas o que é mais “conveniente”. Se o expediente é válido, é válido para tudo.
O ativismo judicial não encontra escopo na nossa Constituição, porque há uma perspectiva básica a norteá-la: as leis são construídas por uma moral social representada pela composição do Parlamento. Se não há relevância social em um comportamento que a lei quer regular, cai em desuso e logo é revogada, embora se saiba que o costume não revoga lei, mas a torna irrelevante ou, às vezes, indesejável. Se há distorções entre o povo e seus representantes, é um problema de voto, educação cidadã e decência em exercitar o direito ao voto.
O STF, composto por 11 ministros não eleitos, extraídos de uma casta social privilegiada, não pode ocupar a função legislativa. Isso está errado por dois motivos principais, um estrutural e outro contextual. O estrutural: a representação do povo legisla e o órgão técnico controla o que está fora do escopo legal. Se permitirmos uma inversão ou flexibilização nessas regras, o caos institucional está lançado, a segurança jurídica se esvai e abrimos caminho para o problema conjuntural que vivemos: a composição do STF pode ser alterada a qualquer momento por uma nova PEC da bengala. Não sou religioso, mas a divisão entre os poderes da res pública deve ser quase como um dogma para todos nós. E dogma sério, não dos neopentecostais.
Esse mesmo Congresso que aí está – a essência podre é idêntica – aprovou em 2015 uma emenda à Constituição alterando a idade da aposentadoria compulsória dos ministros do STF. Dilma perdeu a possibilidade de indicar cinco ministros da suprema corte. Podem – e querem – fazer o mesmo sob um governo Bozo.
Talvez seja mais estratégico lutar para forçar o Congresso a legislar sobre o tema, no que o STF pode ajudar reconhecendo a omissão e estabelecendo um prazo e defender a postura do Supremo como corte protetora da Constituição que não pode legislar nem criar tipos penais, do que, em contexto desfavorável, soltar a grita contra decisões que agridam o que se acredita correto e justo, porque do lado de lá, muita gente também acredita ser incorreta e injusta a criminalização da homofobia.
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