Pensando no Sínodo Panamazônico de outubro, escrevemos sobre a vontade do papa Francisco de ordenar casados ao sacerdócio, especialmente indígenas, para os lugares distantes na Amazônia. Será um sacerdote do jeito indígena, seguramente diverso do tradicional.
> Padre, deputado e adversário do celibato
Ocorre que nos lugares sem a assistência de sacerdotes, coordenadores de comunidades eclesiais de base já estavam presidindo celebrações da Ceia do Senhor. Não são ordenados, mas ninguém dirá que Cristo não está aí presente na Palavra, na comunidade e em sua celebração. A questão não é apenas intra-eclesial católica, é também ecumênica. As igrejas que saíram da Reforma celebram em suas comunidades a Ceia do Senhor por pastores não ordenados. Qual é o valor dessas celebrações? Estará realmente Cristo aí presente sob as espécies do pão e do vinho?
Tentaremos responder, em ambos os casos, positivamente, fundados numa vasta documentação histórico-teológica que não pode ser aqui aduzida mas é encontrável no livro Eclesiogênse: a reinvenção da Igreja, Editora Record 2008, páginas 165 a 188.
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A afirmação básica, definida pelo Concílio Vaticano II, é: ”A celebração do sacrifício eucarístico é o centro e o cume de toda a vida da comunidade cristã” (Christus Dominus, n.30). Os fiéis desejam a eucaristia. Pode ser negada a eles pelo fato de não haver um ministro ordenado em seu meio? Os coordenadores das comunidades fazem tudo o que um ordenado faz, por que não podem também consagrar? O normal seria que fossem ordenados. Mas não o são porque não são celibatários.
A pesquisa rigorosa sobre o tema concluiu haver duas fases. No primeiro milênio do cristianismo, a lei básica era: ”quem preside a comunidade, preside também a eucaristia; podia ser um bispo, um presbítero, um profeta, um doutor, um confessor ou um simples coordenador”. Seria impensável uma comunidade ficar sem a eucaristia pela falta de um bispo ou de um sacerdote. Entrava o coordenador da comunidade, como ocorre nas nossas comunidades. O nexo era o coordenador da comunidade e a celebração da eucaristia.
No segundo milênio houve uma reviravolta. As disputas entre o Imperium e o Sacerdotium deslocaram o tema da comunidade em favor do tema do poder sagrado. Os papas reivindicaram o poder sagrado acima do poder imperial. Esse poder sagrado vem mediante o sacramento da Ordem. O nexo agora é quem detém o poder sagrado e quem não o detém. Só quem é ordenado tem o poder de consagrar. O leigo ficou excluído, mesmo sendo coordenador. Agora há a ordem laica e a sacerdotal.
Com referência às celebrações eucarísticas das igrejas cristãs não romano-católicas, parte-se do fato de que nelas se celebra a Ceia do Senhor pelos ministros aceitos pelas respectivas comunidades. A validade desta celebração não advém do sacramento da Ordem, via imposição das mãos feita pelo bispo sobre o fiel leigo, que passa então a ser sacerdote com poder de consagrar. Para os evangélicos, o poder de celebrar deriva da fé e da fidelidade à doutrina apostólica acerca da presença do Senhor na celebração da sagrada ceia. O mesmo poderíamos dizer das celebrações nas comunidades eclesiais de base: a fé apostólica na real presença de Cristo no pão e no vinho abençoados pelo coordenador ou por um grupo de coordenadores, conferiria o poder de consagrar. Cristo estaria aí presente.
Outro polo de compreensão se funda no valor do batismo tomado em sua integralidade. É doutrina comum que o batismo é a porta de entrada de todos os sacramentos e conteria seminalmente todos os demais. Pelo batismo todos os fiéis participam do único sacerdócio realmente válido, que é o de Cristo. O sacramento da Ordem não é o sacramento do bispo ou do padre. É o sacramento da igreja, como comunidade dos fiéis.
Se alguém é ordenado no sacramento da Ordem, é para o serviço da comunidade, de sua coordenação e animação espiritual. Não existe um frente a frente: por um lado o fiel, sacerdote comum, sem poder sacramental nenhum; e por outro o sacerdote ordenado com todos os poderes. O que existe é uma comunidade toda ela sacerdotal e profética que especifica as funções, sem uma diminuir a outra, uma de consagrar e coordenar. a outra de interpretar os textos sagrados, de se responsabilizar pelos cânticos, de visitar enfermos etc.
Ademais, é doutrina comum que depois do sacerdócio de Cristo não pode haver nenhum outro sacerdócio a título próprio. Por isso é Cristo quem consagra. O sacerdote não consagra. Ele tem o poder de representar, tornar visível para a comunidade o Cristo invisível. Ele não substitui Cristo.
Numa comunidade bem organizada, há o sacerdote ou o pastor com essa função. Mas quando esses faltarem, e não havendo culpa da comunidade, o coordenador pode assumir essa função de representação de Cristo. Essa situação hoje em dia é bastante frequente, daí a importância de se reconhecer a validade das celebrações dos pastores e dos coordenadores leigos.
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