Quando esta coluna for publicada é capaz de Ricardo Vélez, ministro da Educação, não ser mais ministro. Mesmo para um governo de incompetentes empedernidos como o atual, é difícil suportar uma carga excessiva de burrice. Tem hora que cansa. O atual governo tem gasto mais tempo, energia e saliva para explicar as imbecilidades pronunciadas pelos seus integrantes do que governando o país.
Neste espaço já dissemos que é impossível reescrever a história adaptando-a aos humores e sistemas de crenças dos detentores do poder. Uma coisa é Damares, ministra da Família, garantir que foi Deus quem inventou a Matemática. É uma idiotice, mas chega a ser quase inofensiva. Outra bem diferente é o ministro da Educação querer substituir os livros de história por outros onde a versão dos fatos pretéritos lhe seja mais conveniente. Até porque não vai adiantar coisa alguma. “Los echos son los echos”, na língua-mãe do ministro. E ponto final.
Onde se lê: “regime democrático de força” leia-se: “ditadura”
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Pois o ministro (alguém entra aí no Google e confere se ele ainda continua ministro) Ricardo Vélez teve a ousadia de afirmar, com aspas e tudo que “a história brasileira mostra que o 31 de março de 1964 foi uma decisão soberana da sociedade brasileira. Quem colocou o presidente Castello Branco (que assumiu após o golpe) no poder não foram os quartéis”. E o regime militar, que durou de 64 a 85, teria surgido “de uma composição e de uma decisão política (…) em que o Executivo chamou para si mais funções”. E mesmo diante de todas as atrocidades, desaparecimentos, execuções, torturas, censura à imprensa, perseguições políticas e cassações de mandatos, Vélez teve a coragem de afirmar que “não houve ditadura e sim um regime democrático de força”
(Parêntese. Em 1977, eu era repórter político do Jornal do Brasil quando recebi a notícia da cassação, pelo presidente-general Ernesto Geisel, do mandato do líder da oposição na Câmara, deputado Alencar Furtado. Três dias antes, Furtado tinha feito um discurso num programa de tv que entrou para a história. Nele, falava de “lares em prantos; filhos órfãos de pais vivos — quem sabe — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez.” Fui repercutir a cassação com o presidente do Senado, Petrônio Portela. Diante da minha afirmação de que Alencar tinha sido cassado, Petrônio pronunciou um palavrão, pediu desculpas e saiu murmurando enraivecido: “como não tiveram pelo menos a decência de me avisar?”
Pois era assim a ditadura: um completo e total desprezo pelos demais poderes. Nem o presidente do Congresso tinha sido avisado da cassação do líder da oposição. Soube pela boca de um repórter iniciante. Mas, segundo Vélez, não houve ditadura. Fecha parêntese).
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Onde se lê: “Executivo chamou para si mais funções” leia-se: “ditadura”
Vélez diz que o 31 de março foi uma decisão soberana da sociedade brasileira. Não foi. E a história demonstra: foi apenas uma quartelada. O que ele chama de “sociedade” eram apenas aquelas senhoras pias e contritas que participaram da Marcha com Deus pela Liberdade. E se não foram os quartéis que colocaram Castello no poder, quem o colocou lá? O povo? Ou alguém acredita, como Vélez e Bolsonaro acreditam, que o fajuto colégio eleitoral que carimbava as escolhas dos generais de plantão era democrático? Ele diz que o que houve foi um momento “em que o Executivo chamou para si mais funções”. Se não fosse trágico, seria de matar de rir. Porque se trata, apenas, de uma definição heterodoxa de ditadura, momento em que “o Executivo chamou para si mais funções”. Apenas…todas. Todas, como em qualquer ditadura.
Detalhe: os militares já resolveram essa questão de 1964 há muito tempo. Vários deles se envergonham do que foi praticado ali e não estão dispostos a exumar essa história. Sabem que o mau cheiro será insuportável.
Mas o pior vem agora. Vélez teve a coragem de anunciar que vai mesmo (isto se ainda for ministro, alguém aí confere, por favor), fazer “mudanças progressivas nos livros didáticos” para realizar uma revisão das versões sobre o regime militar.
A Carta Brandi foi uma baita fake news
Com certeza, Vélez acredita na versão de que João Goulart queria implantar a tal de “república sindicalista” para implantar o comunismo no Brasil. O ministro podia procurar saber o que foi a “Carta Brandi”. Iria parar de falar bobagens. Não precisa ir ao Google, eu conto. A “Carta Brandi” foi uma carta divulgada em setembro de 1955, endereçada a João Goulart, candidato a vice-presidente da República, e atribuída ao deputado argentino Antônio Jesús Brandi. O documento se referia a supostas articulações de Goulart com o governo argentino, chefiado à época por Juan Domingo Perón, visando à deflagração no Brasil de um movimento armado de cunho sindicalista. Um inquérito policial-militar, instaurado em outubro do mesmo ano, comprovou que a tal carta era um documento apócrifo, forjado por falsários argentinos para ser vendido aos opositores de Goulart. Ou seja: tudo não passou de uma fake news, para usar o palavreado de hoje, inventado para servir de munição aos opositores de Goulart. E ainda hoje, gente como Vélez e Bolsonaro sustentam a versão falsa como se ela fosse verdadeira.
Como o autoritarismo está na base de todas as decisões ou anúncios do atual governo, não custa lembrar ao ministro e ao Presidente que mudar conteúdo de livros didáticos não se faz com uma canetada. Para isso terá de ser criada uma comissão com representantes do ministério, da sociedade e da academia e de especialistas em história contemporânea. Que dificilmente farão uma revisão tão profunda na história recente.
Enquanto isso, os livros continuarão a contar a versão correta de que o Brasil foi dominado por uma ditadura militar durante 21 anos, durante a qual houve prisões ilegais, sequestros, torturas, censura, assassinatos e o diabo. Lamento, ministro (alguém vê aí se ele ainda é ministro), mas “los echos son los echos”. Quer o senhor queira, quer não queira.
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