A jornalista que revelou as humilhações a que foi submetida a influenciadora digital Mariana Ferrer, durante julgamento de processo que movia por estupro contra um empresário em Santa Catarina, virou alvo de ataques nas redes sociais. A repórter catarinense Schirlei Alves, de 34 anos, convive desde quinta-feira (5) com ofensas pessoais e comentários machistas que tentam desqualificar seu trabalho e sua condição de mulher.
Em reportagem publicada na última terça-feira (3) pelo site The Intercept, Schirlei apresentou imagens inéditas da audiência virtual em que a defesa do réu, o empresário André Aranha, recorre a fotos sensuais de Mariana – algumas chamadas por ele de “ginecológicas” – para questionar a acusação de estupro contra o seu cliente.
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A jovem, na época promoter de uma casa noturna em Florianópolis, diz ter sido dopada durante uma festa em 2018 para ter relações sexuais com Aranha. Em setembro, o juiz do caso absolveu o réu, aceitando o argumento do Ministério Público e da defesa de que o acusado não tinha condições de saber se a garota, então com 21 anos, não estava consciente do ato sexual.
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Para se referir à tese acolhida pelo juiz, o Intercept usou a expressão “estupro culposo”. Pelo Código Penal, o termo culposo é usado quando não há intenção de cometer o crime. Essa modalidade, no entanto, não existe para estupro e não foi usada na sentença. Após ampla repercussão da reportagem, o Intercept justificou por que usou a expressão entre aspas ao longo do texto.
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”, destacou o site.
PublicidadeO termo foi usado pela reportagem com base no argumento que o promotor Thiago Carriço, que atuou no caso, pediu a absolvição do empresário.
“Se a confusão acerca da idade pode eliminar o dolo [em caso de relações com menores de 14 anos que pareçam ter mais idade do que isso], por que não aplicar-se a mesma interpretação com aquele que mantém relação com pessoa maior de idade, cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento?”, questionou o promotor. Sem o elemento do dolo, Aranha foi absolvido por insuficiência de provas.
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O termo foi encampado por outros veículos e deflagrou uma campanha nacional nas redes sociais contra a violência sexual e o tratamento dispensado às vítimas no Brasil. Também suscitou a discussão no Congresso sobre a necessidade de ampliar a proteção às mulheres que denunciam esse tipo de crime.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) abriram procedimento para avaliar a conduta do promotor e do juiz na audiência. O Conselho Nacional do Ministério Público já apurava desde outubro a conduta do promotor Carriço.
A diretoria da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) divulgou, nesse sábado (7), nota de repúdio aos ataques dirigidos contra a jornalista autora da reportagem.
“A Abraji repudia a amplificação das vozes de ódio contra a jornalista. Discordar do encaminhamento de uma reportagem, contestar os processos de apuração de um veículo ou apontar erros fazem parte do jogo democrático. Desqualificar uma jornalista mulher com palavras de baixo calão e discurso de ódio por ela desempenhar seu trabalho de informar à sociedade um assunto de interesse público, por outro lado, é um comportamento antidemocrático”, diz trecho do texto divulgado pela associação.
Veja trecho da audiência:
Depois de receber mensagens depreciativas e machistas, Schirlei fechou sua conta no Instagram, na qual divulgava reportagens sobre violência contra mulheres. Ela disse ao Congresso em Foco que avalia tomar algum tipo de providência jurídica. “Muitas pessoas partiram para a ofensa, com xingamento, dizendo que eu tinha de ser presa ou me chamando de louca, coisa que costumam fazer para desqualificar as mulheres. As mensagens são muito parecidas”, conta a jornalista, que tem recebido apoio de promotoras inconformadas com o desfecho do caso.
Para Schirlei, a discussão sobre o emprego do termo “estupro culposo” tem sido usada para tirar o foco do tratamento dispensado no Brasil às vítimas de violência sexual e às mulheres de maneira em geral.
A polêmica em torno da expressão não apaga as imagens da audiência. Por meio de videoconferência, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor de Aranha, analisou fotos publicadas por Mariana Ferrer, que trabalhava como modelo, e as definiu como “ginecológicas”, sem ser questionado sobre a relação delas com o caso.
Ele disse que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana. E ainda repreendeu o choro da jovem diante de suas frases: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
Em um raro momento de intervenção, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, avisou Mariana que interromperia a gravação para que ela pudesse se recompor e pediu ao advogado para manter um “bom nível”. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, protestou a jovem.
Para Schirlei, tentar transferir para a vítima a responsabilidade pelo crime não é caso isolado quando se trata de violência sexual contra a mulher.
“Apesar de todos os ataques, o mais importante é ver desdobramentos da revelação do caso no Congresso para as vítimas serem mais protegidas e perceber que algo pode melhorar. Não foi um caso isolado, como outras reportagens têm mostrado. Alegações jurídicas semelhantes foram usadas em outros julgamentos. Fico feliz porque muitas mulheres também se encorajaram a denunciar os casos de violência que sofreram”, disse a repórter ao Congresso em Foco.
O primeiro promotor do caso, Alexandre Piazza, apresentou denúncia contra o empresário a partir do material genético colhido na roupa de Mariana e no copo no qual Aranha bebeu água durante interrogatório na delegacia.
A absolvição do empresário foi recomendada pelo novo promotor do caso, Thiago Carriço, que concluiu não haver como provar a culpa do réu. Após a repercussão da reportagem, o Ministério Público divulgou nota em que alega que Carriço não se fundamentou na tese do “estupro culposo”, mas pela falta de provas de que o empresário tenha praticado o crime de estupro de vulnerável.
Na nota, o Ministério Público ainda “lamenta a postura do advogado [Cláudio Gastão da Rosa Filho] do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes”.
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