Desde que cheguei ao Brasil, em plena ditadura, me mantive alerta sobre o meio jurídico e a magistratura, pois meu ativismo em direitos humanos exigia estar muito antenado. Portanto, tive de conhecer com detalhe o curriculum dos advogados democráticos, os desembargadores, os juízes e os membros do STF, para saber como agir sem excessivo risco para as pessoas protegidas e também para minha própria família.
Anos depois já se ouvia falar do lendário prestígio de Barroso por seus escritos, mas só o conheci pessoalmente em 2009, por ocasião de sua histórica participação e defesa no caso Battisti, em que estive envolvido desde o início como militante de direitos humanos. Conversamos e trocamos e-mails diversas vezes, mas sua disposição, sensibilidade, conhecimento e competência, e de sua equipe, me surpreenderam. Achei fascinante sua humildade, sua cordialidade com todos os estratos da sociedade, seu corajoso e apaixonado envolvimento nas causas que defendia e seu desejo de ser entendido por todos. Gostei muito de seu estilo direito e franco, especialmente, de seu senso de humor.
Quando releio alguns de seus trabalhos sobre células-tronco, fetos anencefálicos ou terrorismo de Estado na Itália, imagino, como aconteceu com a primeira leitura, que o autor é um cientista e não um jurista. Mesmo seus escritos jurídicos estão cheios de conteúdo e inteligentemente quase desprovidos de retórica. Uma vez um magistrado me disse que a Justiça tinha sua própria linguagem técnica como tem a ciência, mas ele talvez não tivesse reparado que a ciência usa palavras desconhecidas apenas para conceitos novos, cuja complexidade vai além da cognição cotidiana. O cientista não deforma termos conhecidos para demonstrar erudição ou para que seja difícil ser entendido pelo povo. Essa clareza e rigor da ciência, cheia de conteúdo analítico e significado ético e humanista, é o que encontrei nos escritos de Barroso.
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Outra coisa muito importante foi seu engajamento militante, em causas de direitos humanos, como a defesa da Lei 11.105 (sobre as células-tronco), na da ADPF nº 54 (aborto de fetos descerebrados) e muitas outras, como a defesa das legalizações de uniões homoafetivas e o próprio caso Battisti. Na extradição 1085, Barroso refutou com elegância as inverdades (entre as quais havia contradições lógicas extremamente evidentes) do primeiro relator do processo, e ignorou com dignidade os sarcasmos com que suas objeções ao processo foram recebidas. Entre muitos outros pontos, deve tornar-se histórica sua análise da repressão na Itália, uma substituição da logomaquia do relator pela linguagem objetiva. Entre as fontes impecáveis por ele citadas, estava o excelente livro Italy: A Difficult Democracy: A Survey of Italian Politics, de Frederick Spotts & Theodor Wieser. Justificava os fatos com fontes sobre os fatos e no com base na “lavra de insignes julgadores” ou na doutrina, como é habitual no mundo jurídico, autoreferencial e críptico.
O que eu achei, porém, mais importante foi sua incomum capacidade emocional. Suas razões finais no caso da extradição 1085, em 8 de junho de 2011, foram muito emocionantes. Não poupou expressões que poderiam irritar à maioria da magistratura, como a célebre frase de Dolores Ibarruri (“morrer de pé e não viver de joelhos”) e o apelo a que o Brasil não ficasse “de cócoras” ante a Itália. Foi a emoção mais forte que experimentei por um fato não pessoal, desde as condenações dos urubus da ditadura Argentina nos últimos anos.
Algumas pessoas lamentam que Barroso se defina sem ideologia e não se alinhe com a esquerda atual. Todavia, muitos não entendem que a defesa dos direitos humanos, de Antígone a Erasmo, de Giordano Bruno a Beccaria, de Karl Marx a Herbert Marcuse, são a parte mais valiosa do programa tradicional da esquerda. Que esse fundamento seja hoje ignorado pelos que chamam de “esquerda” o misticismo dito “de libertação”, ou consideram esquerdistas as ditaduras islâmicas, não modifica a história. A esquerda é uma proposta de emancipação e não um projeto de poder, como é apresentada pelo pós-stalinismo.
A dramática situação dos direitos humanos no Brasil exige a rápida luta por eles. Se, algum dia, crianças e adolescentes das favelas não continuarem sendo assassinados pela polícia por serem negros ou pobres, isso, no Brasil, será equivalente a uma verdadeira revolução.
A têmpera de uma pessoa se mede por algumas variáveis: uma é a admiração e reconhecimento pelas pessoas esclarecidas, humanitárias e generosas. Outra é a repulsa dos medíocres, intrigantes, autoritários e ignorantes. Nesse sentido, as vozes histéricas que se levantaram contra a indicação de Barroso nos lembram a frase de Dom Quixote a seu fiel escudeiro, Sancho Pança: “Latem, Sancho, sinal que cavalgamos”. Mas, hoje não deveríamos usar a nobre figura do cão que late, mas a da bactéria que infesta.
Neste caso, a presidente Dilma plantou uma marca histórica nas instituições brasileiras, ao nomear para o STF uma das personalidades públicas mais irretocáveis dos dias de hoje e das que temos lembrança. Ela demonstrou grande coragem ao escolher um iluminista nesta hora em que o Brasil está sufocado por gangues obscurantistas e a seita mais poderosa do mundo é regida por um íntimo colaborador da criminosa ditadura argentina.
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