Na agricultura familiar, se cultiva e se cria tudo que é possível, e busca-se cultivar o impossível, o sonho. No nosso caso, cultivávamos café, arroz, milho, feijão, batatas, hortaliças, vegetais, frutas e animais (galinhas, porcos, gado e animais de tração). Na época, com pouca tecnologia e mesmo que ela existisse, sem capacidade econômica para ter acesso à compra de, no mínimo, um trator, tudo era feito na enxada, enxadão, machado, foice e facão. Portanto, um trabalho penoso.
Por ser um trabalho difícil e penoso, meu pai sempre dizia que não queria isto a seus filhos. Portador de um hercúleo esforço, fez de tudo para que estudássemos. Portanto, além de trabalhar na roça, ele nos forçava a estudar e, mesmo morando no sítio, frequentei a escola primária, fiz o ginásio e, na época, o científico, tudo graças às exigências e aos esforços do meu pai e da minha mãe. Em um período estudava e, no outro, na roça trabalhava.
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Terminado o ginásio, comecei a sonhar ser médico. Morando na zona rural do interior do município de Rolândia, um dia parti para Curitiba para terminar o terceiro científico e tentar o vestibular para cursar medicina. Depois de dois anos em Curitiba, estudando e trabalhando (fui encadernador e impressor), consegui passar na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Católica do Paraná, atualmente, PUC. Na época, mais que hoje, os filhos de pobres que só estudaram em escolas públicas tinham poucas possibilidades de entrarem em universidades públicas. Na faculdade, continuei a trabalhar, agora de garçom.
Enquanto estudava e trabalhava, fui fazendo a minha formação profissional e política. Antes e durante a década de 1970, período em que estudei medicina, os trabalhadores só tinham acesso (precário) ao serviço de saúde se tivessem carteira de trabalho assinada, caso contrário, ou pagavam pela consulta e internamento ou eram atendidos como indigentes. Sim, indigentes.
Nos ambulatórios, enfermarias e corredores dos hospitais, homens e mulheres que não tinham carteira assinada ou que não conseguiam pagar eram a maioria. E, na maioria das vezes, chamados de indigentes. Quando internados nas enfermarias, na cabeceira do leito, junto ao nome do cidadão ou cidadã, existia a sigla “N/C” (não contribuinte).
Na época, também precariamente existia o FunRural, para o atendimento dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, mas toda vez que se ia usar, tamanha eram as exigências, que acabava-se sendo atendido como indigente. Portanto, caso eu ou minha família viéssemos a necessitar de um atendimento médico, ou vendíamos parte ou tudo do pouco que tínhamos, ou seríamos tratados como indigentes, ou para aliviar o adjetivo, como “N/C”.
Neste ambiente, fiz a minha formação médica e política, pois não há como não se politizar com tamanha injustiça. Homens e mulheres trabalham e trabalharam a vida inteira, lutam e lutaram a vida inteira para melhorar suas vidas e estudar, sem que seus filhos tivessem o direito sequer a um atendimento médico digno, isso me indignava e indignava muita gente.
Foi por essa razão histórica e nessa conjuntura que muitos profissionais da área de saúde, inclusive muitos médicos e médicas, começamos a lutar por um sistema público de saúde, e com qualidade. Foi assim que conseguimos conquistar que na Constituição constasse que saúde é um dever do Estado e direito do cidadão. Foi assim que conquistamos o Sistema Único de Saúde (SUS), agora, tão aviltado por médicos e médicas sob o comando das entidades médicas, principalmente dos conselhos regionais e do Conselho Federal de Medicina.
Estas entidades, ao se posicionarem contra o programa “Mais Médicos”, além de se opor ao SUS, contribuíram para a construção de uma relação, no mínimo, agressiva, entre muitos médicos e médicas em relação aos cidadãos e cidadãs.
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