Há um aspecto sobre o julgamento do mensalão que merece uma reflexão. Pelo que se vem prospectando dos posicionamentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a possível situação mais favorável à maioria dos réus do processo já envolveria a prática de um crime: o crime eleitoral. Sair com a admissão desse crime seria a situação mais favorável porque, no caso, tal crime a essa altura já teria prescrito. Ficaria apenas a pecha moral, sem nenhuma sanção maior. A partir daí, a ideia é diluir ao máximo essa pecha moral. Seria o triunfo do “todo mundo faz, sistematicamente”, aquela frase do ex-presidente Lula na declaração que deu em Paris na época tentando resumir tudo o que houve a caixa 2 de campanha.
Claro, a análise do longo processo que vai se iniciar em agosto não poderá em nenhuma hipótese ser simplificada assim. Há contra os 38 réus imputações diversas, que terão de ser analisadas individualmente. No seu relatório inicial, o ministro Joaquim Barbosa já livra dois de punição, por falta de provas: o ex-ministro da Secretaria de Comunicação Luiz Gushiken e o ex-assessor do PL (hoje PR) Jacinto Lamas. Quanto aos demais, vai na linha de manter as penas sugeridas pela Procuradoria-Geral da República, para diversos crimes, como peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. E, principalmente, referenda a acusação feita na época pelo então procurador Antonio Fernando de Souza, de que se formou “uma sofisticada quadrilha” para comprar “suporte político” para “garantir a continuidade do projeto político do PT”. Para viabilizar o projeto, amparou-se em esquema que o publicitário Marcos Valério já fizera para o PSDB em Minas Gerais, a partir de empréstimos em troca de contratos proveitosos com o governo depois de Lula eleito.
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O relatório de Ricardo Lewandowski como ministro revisor não é conhecido. Mas as informações que correm são no sentido de que ele teria atenuado as imputações defendidas por Joaquim Barbosa. E de que, de um modo geral, iria mais no sentido de referendar a tese de que tudo aquilo que se apelidou de mensalão não passou da formação de um fundo para financiamento irregular das campanhas do PT e dos seus aliados. Basicamente, caixa 2, crime eleitoral.
Com os ajustes que balizarão as decisões caso a caso, seja como for o relatório revisor de Lewandowski, será mesmo entre esses dois pontos que correrá a discussão sobre o mensalão. Individualmente, os ministros terão que discutir o que cada um dos réus fez, as acusações contra eles e o que dizem em suas defesas. Mas o pano de fundo será esse. De um lado, a “sofisticada quadrilha” descrita pelo Ministério Público. De outro, o “todo mundo faz, sistematicamente” do comentário de Lula.
A honestidade obriga que se diga que há um pouco de ambas as coisas em qualquer que seja o lado para qual penda o julgamento. Se o PT comprava com dinheiro o apoio dos partidos aliados e usou dinheiro público para isso, certamente não foi mesmo o único a fazer isso. E, para não estender demais o assunto, bastam as menções aos outros mensalões que pululam nas páginas dos jornais. Há o mensalão original – o mineiro. Há o mensalão do DEM de José Roberto Arruda em Brasília, etc.
E a prática de caixa 2, então, nem se fala. O processo eleitoral brasileiro é caríssimo. Não se elege hoje um deputado federal com menos de R$ 1 milhão. A evolução dos custos da campanha política no Brasil é impressionante. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, em 2002 gastaram-se R$ 94 milhões na campanha presidencial. Em 2010, os gastos foram de R$ 590 milhões. Na campanha para deputado federal, o valor pulou de R$ 191 milhões em 2002, para todas as campanhas, para R$ 926 milhões em 2010. Quase R$ 1 bilhão! Sem falar no dinheiro não contabilizado. Lula tem razão: o caixa 2 é, infelizmente, uma prática generalizada.
O problema da frase de Lula é outro. Problema ainda maior se, ao final do julgamento do mensalão, for esse o pensamento a prevalecer. O mau comportamento generalizado não pode ser banalizado e passar a ser considerado um comportamento normal. Ninguém pode achar normal um processo político que declaradamente se concretiza desrespeitando as suas regras. No qual as pessoas são eleitas por força das suas estratégias para burlar a lei e as normas. Por força do dinheiro irregular do qual dispõem e dos compromissos inconfessáveis que firmam.
E se a banalização for além – no sentido de julgar normal que se compre literalmente apoio político em troca de contratos polpudos no governo e outras benesses –, aí, a coisa ganhará um grau de gravidade que beira o pesadelo. Será a instituição de um Estado assumidamente corrupto. Que não se importa nem um pouco com isso. Um Estado em que ninguém pune ninguém, em que ninguém acusa de fato ninguém, em que os enrolados se protegem mutuamente. Porque, afinal, nesse Estado “todo mundo faz, sistematicamente”. Qualquer semelhança com as claques de deputados e senadores tucanos e petistas na CPI do Cachoeira não é mera coincidência.
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