Edson Sardinha e Eduardo Militão
O deputado Robson Rodovalho (PR-DF) destinou uma emenda de R$ 2,3 milhões para uma ONG que subcontratou empresa de um dos pastores de sua igreja, a Sara Nossa Terra. Segundo o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), o convênio para realizar o evento “Brasília Capital Cultural” está inadimplente. Ou seja, o governo quer o dinheiro de volta por entender que houve irregularidade na execução da festividade, realizada em 2008. A ONG está sem diretoria e seu endereço oficial é uma sala fechada num prédio em condições precárias que abriga mendigos em frente à portaria.
O convênio faz parte da lista publicada pelo Congresso em Foco mostrando 461 festas, forrós, carnavais e eventos bancados com dinheiro público nos quais os analistas do Ministério do Turismo identificaram
Clique aqui para ver na íntegra o espelho da emenda de Rodovalho |
A emenda de Rodovalho gerou o convênio com o segundo maior valor da lista, atrás apenas da feira nordestina promovida pelo então deputado Frank Aguiar (PTB-SP). O pedido de recursos do bispo e fundador da Sara Nossa Terra era carimbado. O espelho da emenda indica a ONG Comissão XXI de Desenvolvimento Sociocultural como beneficiária dos R$ 2,38 milhões.
Apesar de Rodovalho negar relações com a entidade, o procurador da prestação de contas da entidade diz que os membros da Comissão XXI tiveram contato com o deputado. O advogado Marcel da Glória Pereira afirma que o bispo e deputado foi procurado por um membro da ONG identificado apenas como Samuel para fazer a emenda em benefício da instituição.
“Ele conseguiu chamar a atenção do deputado para a importância do evento”, narra Marcel. De acordo com ele, Rodovalho viabilizou a participação da entidade no evento ao sinalizar com a apresentação de uma emenda para a Comissão XXI. “O parlamentar liberar recursos ou não depende da confiança que ele tem na instituição”, acrescenta. A emenda foi feita em 2007.
O convênio foi assinado em 15 maio de 2008, data em que começou o evento, com a promessa de pagamento pelo governo. Em 19 de junho de 2008, os R$ 2,3 milhões caíram na conta da Comissão XXI. Um detalhe: segundo Rodovalho, um mês antes do início do festival, ele enviou ofício ao ministério solicitando a possibilidade de os recursos não serem mais destinados à ONG. O documento foi enviado ao site, mas ele não tem protocolo de recebimento pelo ministério. A assessoria do deputado diz que a Comissão XXI foi incluída na emenda parlamentar por “equívoco”. Marcel diz que nunca soube que o deputado pediu a suspensão do repasse para a entidade.
O “Brasília Capital Cultural” foi o único convênio firmado pela ONG com o governo federal desde sua criação, em 2003. Para realizar o evento, a Comissão XXI contratou a produtora Artway – segundo a empresa, por licitação. De acordo com Marcel da Glória, a entidade se limitou a repassar todo o trabalho à empresa. “Ela não sabe conduzir um evento. Ela contratou uma produtora”, afirma. “A Artway fez tudo”, resume.
O dono da Artway é Valdemar Cunha Silva, pastor da igreja Sara Nossa Terra, fundada pelo deputado. Cunha diz não se lembrar de quanto cobrou pela instalação de infraestrutura do evento, como tendas e estruturas metálicas.
Marcel da Glória afirma que a empresa fez mais do que cuidar da infraestrutura: contratou os cerca de 500 artistas que se apresentaram no evento e cuidou da hospedagem e traslado deles. O advogado conta que a entidade não teve lucro com o evento e entregou os R$ 2,3 milhões à Artway.
ENTENDA O CASO
2007: Emenda de Rodovalho, fundador da igreja Sara Nossa Terra, destina R$ 2,3 milhões para Comissão XXI
à 2008: Ministério envia dinheiro para Comissão XXI
à ONG contrata Artway para fazer evento
à Artway pertence a Valdemar Cunha, pastor da igreja de Rodovalho
à 2010: Governo cobra dinheiro de volta da Comissão XXI por irregularidades na execução do evento
Caminhos cruzados
Esta não é a primeira vez que os caminhos de Rodovalho e da Artway se cruzam. Em 2007, o deputado cedeu oito passagens da cota de passagens aéreas da Câmara para trazer de São Paulo oito músicos que se apresentaram na segunda edição do “Desperta, Brasília”, show gospel produzido pelo produtor Gleyson Willy e pela empresa do pastor, conforme revelou o Congresso em Foco no ano passado. Ambos fazem parte da igreja do deputado.
Rodovalho ressarciu a Câmara na véspera da publicação da reportagem.
Apesar dos registros do Siafi, o empresário Valdemar Cunha diz que a Comissão XXI está quite com o governo. Marcel, indicado pela ONG para responder pela prestação de contas do evento, admite que ainda há problemas, mas assegura que a cobrança baixou de R$ 2,3 milhões para R$ 200 mil aproximadamente. De acordo com o advogado, os problemas apresentados foram basicamente de natureza contábil.
Segundo ele, como o pagamento do convênio ocorreu mais de um mês após a realização do festival, a Artway arcou com todas as despesas. “Ela fez mais do que estava previsto no plano de trabalho. Ela tinha recursos próprios, e fez”, diz o advogado. Isso explicaria parte dos problemas apontados pelo Ministério do Turismo na prestação de contas entregue pela ONG. Marcel afirma que espera que os documentos entregues por ele nos últimos dias ao ministério corrijam as irregularidades apontadas pelo governo.
Cunha enfatizou que sua empresa foi contratada por licitação e que suas relações com Rodovalho nada têm a ver com a participação da empresa no caso. Marcel diz que a contratação da Artway foi feita mediante carta-convite, uma modalidade de licitação em que é feita uma cotação de preços entre alguns fornecedores escolhidos aleatoriamente.
A assessoria do Ministério do Turismo afirmou na quarta-feira (15) que a Comissão XXI continua inadimplente – portanto, devedora de R$ 2,3 milhões – porque os documentos enviados ainda estão sendo analisados. A assessoria não confirmou se realmente houve licitação para a entidade contratar a empresa do pastor ligado a Rodovalho.
Homenagem
Na emenda em que destina dinheiro para a Comissão XXI, o deputado afirma que seu objetivo é “homenagear” os pioneiros da capital federal e tornar Brasília “mais presente no imaginário do país, bem como agregar ao imaginário nacional um importante emblema do jeito de ser e fazer dos brasileiros”. De acordo com o pedido do parlamentar, parte dos R$ 2,38 milhões endereçados à ONG seria usada na realização de congressos gospel e eventos para promoção dos mototáxis e motoboys no Distrito Federal. Mas, conforme registros do Ministério do Turismo, todo o recurso foi destinado ao Convênio 625546, alvo da contestação.
A Comissão XXI está sem funcionar há dois anos. O endereço que aparece nos registros da entidade é uma sala comercial no Setor de Indústrias Gráficas (SIG). O imóvel pertence a Marcel da Glória e, segundo ele, foi alugado por dois anos à ONG. O advogado conta que a instituição acabou se desmobilizando, porque seus integrantes se mudaram de Brasília.
No espelho da emenda, Rodovalho indica duas mulheres como responsáveis pela Comissão XXI. O Congresso em Foco tentou contato com as duas advogadas, que moram em Vitória (ES), mas não teve retorno. Marcel disse ao site que as duas não têm nada a ver com a ONG porque saíram da entidade muito antes da realização do convênio com o ministério. De acordo com o advogado, as duas fundaram a entidade, mas não tinham nenhuma relação mais com a Comissão XXI na época da assinatura do acordo para o festival.
Cassado
Desde 25 de agosto, Rodovalho se mantém no mandato graças a liminar da Justiça. Ele foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por infidelidade partidária. O deputado trocou o DEM pelo PP. Em sua defesa, o parlamentar diz que deixou a antiga sigla por uma causa justa: ele tentava fundar uma nova legenda, o Partido Socialista da República (PSR). Como o novo partido não saía do papel, acabou se filiando ao PP para não perder o direito de concorrer nas eleições de 2010 – a lei eleitoral exige no mínimo um ano de filiação partidária. Com a cassação, Rodovalho desistiu de disputar a reeleição.
Fundada em 1992 pelo deputado e por sua mulher, Lúcia, a Sara Nossa Terra tem mais de 750 mil fieis e 800 igrejas espalhadas pelo Brasil e também no exterior. A igreja é dona da TV Gênesis e da rádio Sara Brasil FM, presente em vários estados.
Leia também:
Tudo sobre a folia com dinheiro público
Deputado diz que emenda para ONG foi “equívoco”
Deixe um comentário