1. Mais um espetáculo antidarwiniano. A evolução da espécie humana, em vários momentos, aqui no Brazilquistão, resulta peremptoriamente negada. Seis torcedores do Palmeiras foram indiciados por participar de uma emboscada (na rodovia Anchieta) contra a Torcida Jovem dos Santos. Dois carros que vinham logo atrás, acompanhando os torcedores santistas, atropelaram seis palmeirenses. Leonardo da Mata Santos, de 21 anos, morreu. E já foi sepultado. A maior torcida organizada do Palmeiras estaria envolvida (a polícia ainda está apurando os fatos). As testemunhas contaram para a polícia que pelo menos cem palmeirenses tentaram fechar uma das rodovias mais movimentadas de São Paulo. A rodovia ficou repleta de paus, pedras e rojões. A morte antidarwiniana de Leonardo vem confirmar mais um desonroso título que nos pertence: somos campeões mundiais também na modalidade violência ligada ao futebol (dentro e fora dos estádios, mas sempre por causa desse popular esporte).
2. O site português Mais Futebol Total, em uma reportagem de dezembro de 2013, afirmava que o Brasil lidera o ranking mundial, seguido de Argentina e Itália. A utilização de armas de fogo explica a ocorrência de muitas vítimas fatais. Mais da metade das mortes ocorridas nos últimos 25 anos decorreram de disparos de armas de fogo; cerca de meia centena por agressões e o resto por facadas, atropelamentos ou bombas. Outro dado preocupante: quase dois terços das mortes nos últimos 25 anos nos estádios brasileiros foram de jovens até 30 anos. O jornal Lance falava em 155 mortes entre as torcidas no período de 1988 a 2012. São Paulo é o campeão dessas mortes; 103 foram causadas por disparos de arma de fogo, 39 por agressões, cinco por facadas, quatro por atropelamento e quatro por bombas; em relação à idade, 74 desses óbitos aconteceram com pessoas entre 11 e 20 anos e 53 na faixa dos 21 aos 30 anos. Em dezembro de 2013 os números foram atualizados: 234 mortes ligadas ao futebol no país (30 neste último ano). Recorde mundial absoluto!
3. A USP também divulgou um estudo que corrobora os dados apresentados. No livro Violência no futebol – Mortes de torcedores na Argentina e no Brasil, fruto da tese de doutorado do jornalista André Luis Nery, a partir dos anos 2000, a violência no futebol brasileiro passou a registrar números preocupantes. Na década de 1990, eram raros os casos de morte, geralmente restritos a São Paulo e Rio de Janeiro; mas nos anos seguintes, a violência se espalhou para todos os estados. No estudo, ele traça uma radiografia do tema por meio do levantamento de dados de jornais do Brasil e Argentina, de 1992 a 2012. Os resultados mostram que durante 20 anos ocorreram 133 mortes de torcedores brasileiros, vítimas de enfrentamentos entre torcidas adversárias e acidentes em estádios. Os últimos cinco anos têm sido os mais violentos: só de 2007 a 2011 foram registrados 73 óbitos, cerca de 54% do total. De acordo com Nery, o aumento da mortalidade tem sido acompanhado por uma tendência: a diminuição dos conflitos dentro dos estádios e o aumento de agressões em cenários afastados da cena futebolística (mas ligados a ela). Segundo o estudo, mais da metade dos óbitos, 59,4%, foi ocasionada por armas de fogo. A segunda causa são agressões e espancamentos, geralmente com barras de ferro e paus, que representam um total de 15,8%. O autor do estudo explica que “o confronto entre torcidas acontece em todos os países, mas no caso específico do Brasil há o acesso fácil a armas de fogo. Em 2011, das 20 mortes ocorridas, 17 foram causadas por esse tipo de armamento. Quando as brigas deixam mortos, o caso ganha destaque na imprensa e o problema se amplifica”.
4. Outro estudo sobre o tormentoso assunto foi feito por Maurício Murad (sociólogo do esporte e professor da Universidade Salgado de Oliveira, no Rio de Janeiro), que apontou que 2012 foi o ano com o maior número de mortes desde o início da sua pesquisa, contabilizando 17 comprovadamente relacionadas aos conflitos entre torcedores nos estádios ou fora deles (até o mês de setembro). O ano citado pode ter fechado com mais de 22 mortes. A pesquisa (compreendendo os anos de 1999 a 2008) teve por base dados fornecidos por jornais, revistas e rádios das principais cidades do país no período, com as informações checadas nos institutos médico legais (IMLs) e nas delegacias de polícia das cidades onde as mortes ocorreram, indicou 42 mortes causadas pela violência nos estádios, nesse período. Uma média de 4,2 óbitos por ano [primeira colocação mundial neste período, à frente de Itália e Argentina] nos dez anos estudados. Outros números disponibilizados pelo estudo de Murad, foram: 5,6 mortes de média nos últimos cinco anos do estudo; set mortes de média nos últimos dois anos do estudo; 2009 (com o estudo já concluído): nove mortes; 2010 (com o estudo já concluído): 12 mortes; 2012 (até setembro): 17 mortes.
5. O problema da violência entre torcidas rivais não é recente nem localizado no nosso país. Diversas torcidas foram, ao longo do tempo, banidas e, depois, trazidas de volta aos estádios. Fernando Capez aqui é um nome emblemático em termos de repressão e prevenção. O futebol, por ser um esporte altamente competitivo e extremamente masculinizado, traz à tona problemas individuais, grupais e sociais enraizados que ultrapassam o limite da competição e passam para o plano da cultura, da biologia e da psicopatologia. Nos estádios e suas cercanias também são enfaticamente notadas a violência e a intolerância presentes na sociedade brasileira desde 1500. Apesar de constituir um gravíssimo problema no Brazilquistão, é certo que não se trata de um fenômeno nacional. Os hooligans, grupo do Reino Unido que a partir da década de 60 começou a aterrorizar os europeus que frequentavam os estádios de futebol com ações extremamente violentas, foram acusados na tragédia do Estádio do Heysel, na Bélgica, durante a final da Taça dos Campeões Europeus de 1985, entre o Liverpool da Inglaterra e a Juventus da Itália. Esse episódio resultou em 38 mortos e um número indeterminado de feridos. Os hooligans ingleses foram responsabilizados pelo incidente, o que resultou na proibição das equipes britânicas participarem em competições europeias por um período de cinco anos. Mas essa tragédia não foi a última. Na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha, os ingleses e os alemães promoveram um grande quebra-quebra.
6. O que explica essa violência grupal? Xaro Sánchez et alii, no livro Somos uma espécie violenta? (coordenação de David Bueno), integrantes de um grupo interdisciplinar em neurociências (Barcelona), afirmam o seguinte: “O cérebro humano tem disposição para acreditar com facilidade em qualquer ideologia que lhe permita diferenciar o grupo ao qual pertence dos outros (…); isso pode levar ao assassinato de uma pessoa ou à aniquilação de todo um grupo dissidente; o humano é social porque viver em grupo favorece à sobrevivência; quem vive isolado tem maior chance de contrair doenças e de ser morto (é ruim para a saúde, conforme demonstrou uma pesquisa do final de 1970); o cérebro (humano e dos primatas) desenvolveu a capacidade inata para detectar e processar os sinais indicadores de similitude ou diferença em relação ao grupo ao qual pertence; sabemos desde criança distinguir quem são “os nossos” e quem são “os outros”; somos cooperativos, leais e caridosos com os “nossos”; os companheiros dos grupos são cordiais, honestos, confiáveis e inteligentes; os “outros” são mal-intencionados, ineptos e estranhos (“inimigos”); antipatia, asco e rechaço são sentimentos frentes aos “outros”; diante dessa premissa neurobiológica (que já vem com o DNA), qualquer doutrina, religião ou ideologia ou opinião fanática que reforce suficientemente esses mecanismos pode se converter prontamente em uma ferramenta infalível para fazer com que alguns membros de um grupo atentem contra as pessoas do outro grupo”.
7. Qual é a outra premissa para se desencadear a violência? Os autores afirmam: “Reside no processo de desumanização do “outro”, que se perfaz (a) considerando os outros como diferentes, distantes e (b) tendo-os como indesejáveis e sub-humanos; para o cérebro humano os sentimentos de acolhimento, respeito, simpatia (daqueles que pertencem a seu grupo) ou de antipatia, asco e refutação (dos “outros”) estão localizados no mesmo lugar; depois da desumanização desaparece qualquer tipo de sensibilidade; a morte passa a ser desejável e não gera nenhum tipo de contradição ou compaixão ou arrependimento; se o fanatismo ou a intolerância é acompanhado da exaltação da violência, isso desencadeia com facilidade a agressividade humana; os mesmos mecanismos neuronais que permitem identificar-se com o grupo e que favorecem a cooperação e o altruísmo criam barreiras impermeáveis como sectarismo, tribalismo, preconceitos, fobias com outros grupos”.
Solução: muita escolaridade e de alto nível que trabalhe com o conceito de cidadania, adversidade, alteridade e, sobretudo, ética (que constitui um excelente antídoto para nossa tendencial inclinação para a agressividade e a violência, sobretudo grupal). Nietzsche afirmava que somos “animais domesticados”. Alguns mais, outros menos. A democracia chegou, mas muitos não foram preparados para a vida em sociedade (que é coisa distinta que viver na rua ou em casa). Nossos padrões morais estão longe de serem suficientes. Em países extremamente desiguais o nível de conflitividade é altíssimo. Mas a educação de qualidade não chega para todos. Um único território, milhões de pessoas juntas, muitos conflitos, pouca educação de qualidade, ausência de valores éticos e tendências neuronais para desumanizar os “outros”: tudo está pronto para a explosão da violência. O horrendo espetáculo não vai terminar tão cedo, sobretudo quando se sabe que no Brazilquistão não existe a convicção do império da lei.
*Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.
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