Não sou supersticiosa, mas intuitiva. Dizem que escritores e artistas captam, como sonares, as correntes subterrâneas orientadas para o futuro. Mas, como o inconsciente coletivo tem o dom da ubiqüidade, a mesma corrente que avança retrocede penetrando fundamente no passado. E isso significa que, mediante certas condições, a consciência é capaz de estar simultaneamente em qualquer ponto do universo simbólico.
Anjos e demônios, bruxas e fadas são farinha do mesmo saco, até porque a chave do paraíso também serve no inferno. Mitologicamente, não há entidades unicamente negativas ou unicamente positivas, cada uma delas contém secretamente seu oposto (razão pela qual a sexta 13 de agosto também pode ser um dia de sorte). Odeio psicologizar as coisas. Escritores que gosto absolutamente não psicologizam, quer dizer, não ficam explicando idiotamente porque o personagem fez isto ou aquilo, preferem cair de boca na invenção, elaborando universos ficcionais, não paralelos, mas simétricos ao real.
Penso na cosmogonia de William Faulkner – o condado de Yokanapatawa no delta do Mississipi; em Tlön, Üqbar et Orbis Tertius de Jorge Luís Borges, (ah, sim, Borges e seus minotauros de brinquedo, segundo Nabokov).
Penso n’ O Livro dos Seres Imaginários de Borges e não imagino nada mais eficaz para exorcizar terrores gótico-escabrosos. Ele escreve no prólogo: “O nome deste livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéricas e, talvez, de cada uma de nós e da divindade. Em suma, quase o universo”.
Em suma, uma refinadíssima esculhambação de qualquer universo – real e imaginário. Eis alguns exemplos da versão borgeana dos bestiários medievais e greco-romanos, claro que devidamente resumidos e editados em suas partes melhores:
O Cão Cérbero – Se o Inferno é uma casa, a casa de Hades, é natural que seja guardada por um cão; também é natural que se pense nesse cão como sendo hediondo. A Teogonia de Hesíodo lhe atribui cinqüenta cabeças, mas para maior comodidade das Artes Plásticas, este número foi reduzido e as três cabeças de Cérbero são de domínio público. Já o bramanismo e o budismo oferecem infernos de cães.
O Duplo – Sugerido pelos espelhos , as águas e os irmãos gêmeos, o conceito do duplo é comum a muitas nações. Na Alemanha é chamado Doppelgänger, na Escócia, fetch, porque vem buscar (fetch) os homens para levá-los à morte. Por conseguinte, encontrar-se consigo mesmo é funesto.
Os Demônios de Swedenborg – Os demônios de Emanuel Swedenborg (1688-1772) não constituem uma espécie: procedem do gênero humano. São indivíduos que, depois da morte, escolhem o inferno. Não são felizes nessa região de pântanos, de desertos, de selvas, de aldeias arrasadas pelo fogo, de prostíbulos, de escuros covis, mas no céu seriam mais desgraçados. Deus nos proíbe traçar o mapa do inferno, mas sabemos que sua forma geral é a de um demônio. Os infernos mais atrozes ficam a oeste.
Fauna dos Estados Unidos – A alegre mitologia dos acampamentos de lenhadores de Wisconsin e Minnesota inclui criaturas singulares nas quais naturalmente ninguém jamais acreditou. O Hidebehind está sempre atrás de alguma coisa. Por mais voltas que se desse, sempre o tinha por trás e por isso ninguém chegou a vê-lo, embora tenha devorado muitos lenhadores. Entre os peixes da região há os Upland Trouts, que fazem ninho nas árvores, voam muito bem e têm medo dágua. E não esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa onde vai, mas sim onde esteve.
Os Anjos de Swedenborg – Os anjos de Swedenborg são as almas que escolheram o céu. Cristo havia dito que, para entrar no céu, as almas devem ser justas, Swedenborg acrescentou que devem ser inteligentes e Blake estipularia posteriormente que fossem artísticas. As vestes dos anjos resplandecem segundo sua inteligência. No céu, os ricos continuam sendo mais ricos que os pobres, pois estão habituados à riqueza. Já os pobres de espírito estão excluídos do Paraíso porque não o compreenderiam.
É isso aí: o cinismo mitológico de Borges, posto que ficcional, é uma das suas tantas formas de dizer a verdade.
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