Raimundo Caramuru Barros*
1. INTRODUÇÃO
Neste ano de 2010 o município de Brasília está completando meio século ou 50 anos de existência. A idéia de sediar a capital do Governo brasileiro no interior do país surgiu pela primeira vez no início do século XIX, quando a família real portuguesa foi forçada a se refugiar no Brasil para escapar da turbulência das guerras napoleônicas que sacudiam na época o continente europeu.
No final deste mesmo século, quando o Brasil – que havia conquistado sua independência desde 1822 – resolveu adotar o regime de uma República em 1889 e proclamou sua primeira Constituição republicana em 1891, inseriu no artigo 3 desta Constituição a referência específica de uma área de 14.000 km² a ser localizada no Planalto Central brasileiro, onde devia ser construída a futura capital do país.
No ano seguinte (1892) o governo nomeou a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, chefiada pelo astrônomo Luiz Cruls. Esta Comissão percorreu durante sete meses mais de quatro mil quilômetros do Planalto Central, elaborando um levantamento e estudo detalhado da topografia, clima, geologia, flora, fauna e recursos materiais da Região. Em 1894, essa comissão apresentou seu relatório final que passou a ser denominado “Relatório Cruls”. É de suma relevância recordar que durante o período do Império, a cidade do Rio de Janeiro, enquanto capital de todo o país não era um província, mas um “município neutro”, vinculado diretamente ao governo central do país. A primeira Constituição republicana de 1892 denominou este “município neutro” de “Distrito Federal”, sem transformá-lo em estado, mas, a exemplo da capital dos Estados Unidos, vinculando-o diretamente à Presidência da República.
Em 1946, após a destituição do Estado Novo, chefiado por Getúlio Vargas, e a subseqüente retomada do regime democrático, foi elaborada e promulgada uma nova Constituição que determinava a realização de um estudo para a localização de uma nova capital no interior do Brasil. O objetivo não era mais centrado na segurança nacional, mas visava primordialmente promover o desenvolvimento econômico nas áreas interioranas do território brasileiro. Nomeada pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra em 1948, esta nova comissão, após dois anos de trabalho, concluiu que a área mais adequada para essa finalidade era o chamado “Quadrilátero Cruls”, um território já designado em 1894 pelo relatório da primeira comissão. Em 1955, o Presidente Café Filho designou uma área de 50.000 km² para que nela fosse localizado o Distrito Federal.
Nesse mesmo período posterior à II Guerra Mundial, o Distrito Federal foi elevado à condição de estado da Federação, com o nome de estado da Guanabara. A Assembléia Legislativa deste novo estado criou grandes problemas ao governo Central. A percepção desses problemas levou a população a conferir-lhe a alcunha de “Gaiola de Ouro”.
Em abril de 1956, o Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira ordenou a construção da nova capital com o nome de Brasília – uma sugestão apresentada por José Bonifácio em 1823, logo após a independência do Brasil. O empreendimento foi conduzido pelo urbanista Lúcio Costa e por um grupo de arquitetos, chefiado por Oscar Niemeyer. Além de promover o desenvolvimento do país para o Centro-Oeste, ainda vazio do ponto de vista demográfico e econômico, Juscelino confessava nos bastidores que essa mudança iria ajudá-lo a se livrar dos problemas criados pela “Gaiola de Ouro”.
Numa análise retrospectiva, constata-se que foi uma plêiade de personalidades com estatura de estadistas e ampla visão estratégica que, ao longo de dois séculos (1810 a 2010), marcou as decisões que fizeram de Brasília o centro gerador e propulsor das grandes decisões nacionais e do extraordinário desenvolvimento do Brasil, hoje prestes a se tornar uma influente potência mundial.
Espera-se que os atuais detentores do poder, máxime em nível nacional, mas também em nível local, inspirem-se na grandeza dos líderes que pavimentaram o caminho percorrido até os nossos dias, e não se deixem apequenar por interesses pessoais e corporativos, abortando assim os grandes destinos do Distrito Federal.
Requer-se que os lideres atuais – com o respaldo da maioria esmagadora da sociedade brasileira – demonstrem visão estratégica e descortino de estadistas, com capacidade para criar as condições mais consentâneas e desejáveis, que façam de Brasília a capital de todas as cidadãs e cidadãos brasileiros e o centro condigno das decisões, que impulsionem este país a prosseguir na trajetória já iniciada de se tornar um líder influente no cenário mundial.
2. 1ª OPÇÃO: MANTER E SANEAR ESTRUTURA E REGIME VIGENTES
Para avaliar adequadamente esta primeira opção dois fatores são de fundamental importância: as causas e raízes do fisiologismo político do Distrito Federal; os elevados custos financeiros bancados pela União para sustentar a estrutura institucional e funcional mínima exigida por uma Unidade da Federação.
2.1 Causas e raízes do fisiologismo político do Distrito Federal.
É interessante lembrar que, para Lúcio Costa e Oscar Nyemeyer, Brasília seria uma capital essencialmente administrativa. Todos os servidores públicos teriam moradia garantida no Plano Piloto, de tal modo que os filhos dos funcionários de mais baixo escalão partilhariam com os filhos dos líderes políticos nacionais as mesmas escolas e as mesmas facilidades de lazer.
O dominicano francês Padre Joseph Lebret – fundador da instituição Economia e Humanismo, sediada em Paris, mas responsável pela elaboração de importantes estudos em território brasileiro – ao tomar conhecimento no final da década de 1950 dessas idéias de Lúcio Costa e Niemeyer, considerou-as não somente utópicas, mas destinadas ao fracasso no contexto brasileiro. Na realidade, os candangos (a mão-de-obra que construiu Brasília), recrutados em todo o país, não regressaram aos seus pagos natais, uma vez concluídas as obras essenciais do Plano Piloto. Permaneceram no Planalto Central, ocupando os terrenos em volta do Plano Piloto.
Mas, para entender melhor o fisiologismo político que hoje permeia visceralmente todo o Distrito Federal é indispensável partir de uma visão mais ampla, que pode ser ilustrada pela ocupação do Oeste americano, levada às telas do cinema pelos filmes rotulados como “far-west”. A exploração e ocupação de novas áreas caracterizadas pelo vazio demográfico e econômico costumam atrair levas consideráveis de aventureiros. Até que esta ocupação se consolide e o Estado de direito se organize e se instale, a região pode passar décadas marcada pelo caos jurídico, político e institucional.
No caso de Brasília, faltou a Juscelino uma assessoria mais diversificada, que chamasse sua atenção para a especificidade do Planalto Central. A região em que foi instalada a nova capital é uma área que pode ser denominada como “águas emendadas”, pois ela abrange as nascentes de sete cursos de água, que alimentam grandes rios nacionais, como o Araguaia–Tocantins, o São Francisco, e os diversos cursos de água que formam o rio Paraguai e, em última análise, o rio da Prata. Aliás, essa região contém grande parte das nascentes dos maiores rios nacionais que têm sua origem exclusivamente em território brasileiro. Um plano estratégico de desenvolvimento dessa região era mais importante do que a instalação da capital da República.
Em um olhar retrospectivo, constata-se que a Novacap, a quem cabia esse empreendimento, tornou-se o instrumento de apoio ao fisiologismo ao longo desses últimos 50 anos. Por isso, em todo esse período a administração central do Distrito Federal esteve na mão de personalidades vinculadas à área do Planalto Central, bem antes da criação do DF e da construção do Plano Piloto.
Em função da perspectiva de eleições no DF para todos os escalões eletivos de uma Unidade da Federação, essas personalidades fomentaram ativamente uma forte imigração para o DF, através de uma intensa campanha de distribuição de lotes. Esta campanha atraiu ao longo dos anos numerosos imigrantes de baixa renda (muitos deles abaixo do nível da pobreza), oriundos principalmente do Nordeste, do Norte e da própria Região Centro-Oeste. Esses imigrantes e seus descendentes constituem hoje a grande maioria da população do Distrito Federal.
Concomitantemente, formou-se também uma classe empresarial fundamentada em grande parte na obtenção de benesses governamentais, e em alguns casos oriunda de uma atividade de grilagem de terrenos.
Não é de estranhar que essas camadas amplamente majoritárias na população do Distrito Federal estejam inteiramente focadas nos seus interesses imediatos no Planalto Central. Por isso, essa população majoritária está menos ou quase nada preocupada com a dimensão política e mesmo jurídica de Brasília como a capital de toda cidadã e cidadão brasileiros, e com o papel estratégico que ela representa para o país. Esse caldo de cultura tornou-se um meio fértil para o surgimento e a proliferação de uma política visceralmente fisiológica, conduzida por políticos provincianos, que conseguem cooptar habilmente esta massa majoritária de eleitores para satisfazer suas ambições políticas, dando margem ao avassalador processo de corrupção e de malversação dos recursos públicos, em grande parte repassados pela União, para sustentar seu eleitorado clientelista e fortalecer e ampliar seu patrimônio pessoal.
A grande interrogação: o que fazer para sanear esta situação? Seriam necessários longos anos de educação para a cidadania, tanto em termos de educação formal, como em termos de uma educação continuada. Seria indispensável um aparato policial independente, para desmascarar essa rede de corrupção e um Poder Legislativo e Judiciário capazes de assumir e implantar as medidas cabíveis para a correção de rumos. Além disso, torna-se indispensável um Projeto de grande envergadura para o desenvolvimento socioeconômico do Distrito Federal, com base na sua condição de divisor de águas e detentor das nascentes que alimentam grandes rios nacionais. Por motivos óbvios, esse projeto torna-se- um fator de crucial relevância em termos de Segurança Nacional. Dentro desse contexto e circunstâncias, a questão crucial pode ser enunciada: é viável assegurar tais políticas, mantendo o regime e a estrutura atual exigidas para o funcionamento pleno de uma Unidade da Federação?
2.2 GASTOS PARA MANTER O STATUS DE UNIDADE DA FEDERAÇÃO
No presente momento, os recursos necessários para manter esse status têm dois componentes. O primeiro deles é o volume despendido para o sustentáculo legal de todas as instituições necessárias a uma Unidade da Federação. Vale a pena investir todo esse dinheiro para manter esse status?
O segundo componente é constituído por toda a rede de vazamento, decorrente da corrupção e da apropriação indébita de recursos do contribuinte. Mesmo com a execução das medidas propostas no tópico anterior, o estancamento dessa sangria provocada pela corrupção só se dará no longo prazo. Compensa prolongar esses gastos indevidos ao longo de no mínimo duas décadas? O cabedal elevado de recursos financeiros que a União repassa ao Distrito Federal não teria uma mais proveitosa aplicação no desenvolvimento socioeconômico desta área, em vez de deixá-lo escapar pelo ralo, para sustentar uma estrutura política, dominada inteiramente pelo fisiologismo?
3. 2ª OPÇÃO: PROMOVER UMA INTERVENÇÃO FEDERAL
A intervenção federal pode constituir uma opção para sanear a corrupção sistêmica que atinge hoje o Distrito Federal. A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 34, inciso III, justifica a intervenção federal em uma Unidade da Federação quando se trata de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. Mas o artigo 60, § 1, da mesma Constituição estipula que esta não pode ser emendada na vigência de uma intervenção federal. Se ela for decretada durante o restante do mandato do atual Presidente da República, este estará impedido de solicitar ao Congresso Nacional emendas constitucionais que lhe pareçam relevantes ainda nesse seu final de mandato. Se for de alto interesse da União obter a aprovação dessas emendas constitucionais já em pauta, será necessário apressar a aprovação destas emendas, estabelecer um modus vivendi et operandi provisório, e só decretar a intervenção após aprovação dessas emendas relevantes. Entrementes, dever-se-á igualmente no tempo devido proceder ao processo eleitoral de todos os cargos eletivos a que tem direito atualmente o Distrito Federal, a não ser que antes dessas eleições haja tempo hábil para uma emenda constitucional que modifique o regime jurídico e a estrutura institucional e funcional atualmente vigente para essa Unidade da Federação.
4. 3ª OPÇÃO: CRIAR NOVO PARADIGMA PARA O DISTRITO FEDEAL
Essa terceira opção visa retomar uma antiga tradição do Estado Brasileiro, que em 1834, por meio de um Ato Adicional, transformou a cidade do Rio de Janeiro em município neutro, não integrado a nenhuma das províncias do Império, que foram posteriormente denominadas de Estados, no início da República. Na primeira Constituição republicana, o município neutro do período imperial se tornou Distrito Federal, isto é, território subordinado diretamente ao Governo Central.
Existem hoje no Planeta ao menos dois exemplos deste modelo. O primeiro, que serviu de inspiração aos constituintes de 1892, é o District of Columbia nos Estados Unidos, criado em 1790 a partir de um território de pouco mais de 178 km² cedido na época pelo Estado de Maryland, para nele ser instalada a sede do governo central dos Estados Unidos. O segundo exemplo é encontrado na Austrália. A capital, Camberra, é formada por um território de 2.423 km² cedido pelo Estado de New South Wales. Esse território é formado por dois enclaves. O primeiro – dotado de maior área – situa-se no interior do país e dispõe de 2.350 km². O segundo – com área de apenas 73 km² – fica no litoral e é dotado de um porto. A criação desse segundo enclave fundamentou-se na necessidade de proporcionar à capital um acesso ao mar, em decorrência de peculiaridades específicas deste país.
Brasília, enquanto Distrito Federal, compreendendo o Plano Piloto e a sua circunvizinha conurbação, – não se enquadra no modelo clássico de uma Unidade da Federação. Com efeito, o conceito de Distrito Federal, inaugurado pelos Estados Unidos, e adotado no Brasil pela primeira Constituição Republicana, expressa claramente que esse território, por ser a sede dos Três Poderes do Estado Nacional, pertence a todas as cidadãs e cidadãos brasileiros, e por isso deve estar imediatamente vinculado ao governo central da União.
Os constituintes de 1988, no afã de superar a saga de governos totalitários que marcaram o Brasil no século XX nos interlúdios dos poucos e fugazes momentos de abertura democrática, cometeram este equívoco de outorgar ao Distrito Federal a autonomia política nos mesmos moldes de todas as unidades da Federação. Não é necessário explicitar neste momento as conseqüências trágicas desse equívoco. Elas são sobejamente conhecidas, pois ficaram patentes ao longo desses cinqüenta anos.
O ano de 2010 é um ano emblemático para corrigir esse equívoco e vincular o território do Distrito Federal ao Governo Central da União a fim de tornar patente que seu território pertence de direito a todos as cidadãs e cidadãos brasileiros, inclusive aos brasilienses que nele residem. Esses últimos, por sua vez devem conservar seu direito de participar da eleição do Presidente e do Vice Presidente da República, bem como eleger os senadores e deputados federais, em consonância com a cota que atualmente lhes cabe.
Essa medida, sustentada pelo jornalista Mauro Santayana, é de suma urgência e deveria ser aprovada ainda este ano, para evitar todos os equívocos que a legislação atual está fadada a enfrentar em um ano eleitoral, que pode e deve ser ao mesmo tempo um divisor de águas. Ela supera pela sua clareza e determinação todas as demais medidas apontadas nas duas opções anteriores.
* Filósofo e teólogo, com mestrado em Economia nos EUA, foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009), entre vários outros livros.
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