Bajonas Teixeira de Brito Junior *
Existe uma ansiedade natural de capturar o instante. Qualquer um na situação propícia, munido de uma câmera, fotografa. A imagem capturada serve como souvenir, uma lembrança, que é uma parcela da vida que se preserva a salvo do esquecimento. Preservar a lembrança foi um dos imperativos do início do século XX com a proliferação do cinema. O que mais espantava os contemporâneos era a possibilidade de transcender a morte – de si, dos entes queridos, dos lugares (por exemplo, a fisionomia de um bairro, que muda com o tempo) através de suas imagens registradas pelas câmeras. No longo prazo, porém, a fotografia venceu o cinema como forma de preservação da imagem, um sarcófago plano da memória.
O selfie tem por princípio a facilidade de capturar o momento ou a paisagem, e, além disso, de capturar a própria pessoa que captura. Nesse sentido, serve aos fins do souvenir. Contudo, como é cada vez mais frequente, as pessoas ao defrontarem uma paisagem interessante, são logo tomadas pelo frenesi da captura da imagem. Antes de se permitirem qualquer fruição diante do quadro natural, de um patrimônio arquitetônico, da vista da paisagem, correm para registrar em foto, como se tudo aquilo pudesse sumir tão rapidamente quanto um vídeo no You Tube que, para não ser perdido, faz-se rapidamente o download. Busca-se resguardar e assegurar aquilo que, ao que parece, não se precisaria ter. Por quê?
Não se pode dizer que o sujeito não tenha consciência da possibilidade de fruir a situação, de se deixar levar pelo prazer do encontro com a paisagem ou o lugar. Na verdade ele tem consciência disso. E tanta que busca primeiro assegurar o domínio da situação, pelo selfie, como uma garantia de poder voltar a ela quantas vezes queira, ou seja, de frui-la indefinidamente mais tarde. Assim, não se trata de gozar a paisagem aqui e agora, mas em renunciar a esse gozo imediato (momentâneo) em nome de outro, supostamente mais duradouro. Digamos, uma gozo sustentável.
Ao se incluir o sujeito dentro do instante fotografado (como um atestado de ter vivido, “eu estava lá”, “eu participei disso”, etc.), a imagem aprisiona tanto um ambiente quanto quem, pela fotografia, buscou retê-lo para a memória. Assim, no futuro, ao invés de fruir somente tal ou qual momento instantâneo, a inclusão do sujeito permitiria fruir também a sua própria presença in loco. Congelados na imagem, ambos (o momento e a pessoa) poderiam ser consumidos, isto é, revividos, mais tarde (e sempre). Uma vez apreendida, salva, partilhada, enviada para os amigos ou exposta no Facebook, a imagem deveria servir à finalidade adiada da fruição. Ocorre que quem faz o selfie, nessa altura, já não curte a imagem, mas sim o número de curtidas que sua imagem alcançou.
A experiência puramente estética que poderia vir da contemplação de uma construção, um monumento histórico, uma vista, é retorcida para abrigar também uma experiência matemática, já que o número de curtidas pode ser contado. A intensidade do efeito que a foto produziu sobre a massa de curtidores, é medida pelo número de curtidas e comentários. A densidade da experiência compartilhada através do selfie pode então ser mensurada pelo seu sucesso. Esse sucesso está registrado em números.
Mas nesse caso, toda possível experiência estética, intelectual ou o que seja, que pudesse ter sido ganha in loco, antes de feito o selfie, entra numa metamorfose. Agora, em que pode alcançar maior ou menor popularidade pelo número de curtidas, isto é, pela resposta social, o que teria sido uma experiência estética sofre uma transformação, torna-se uma experiência social refletida em números. (De alguma forma sempre foi assim. No romance Bel-Ami, de Guy de Maupassant, um rico proprietário de jornal compra um quadro muito valioso e o expõe em sua mansão. Toda a Paris vai em romaria apreciar a obra. Mas é sobretudo o valor pago ― ou seja, número, quantidade ―que atrai os visitantes. E é o número de visitante, o sucesso, que confirma para o comprador o acerto de ter investido na obra.
Uma diferença é que hoje esse efeito de atração não é mais monopólio dos muitos ricos, mas foi de algum modo democratizado pelo selfie, embora se possa questionar o caráter dessa democratização, e da “obra” em questão). No selfie, seu peso social aumenta com o número (de curtidas, comentários, compartilhamentos, etc.) que registra a atenção por ela recebida. A possibilidade de quantificar (os números) é muito significativa para a mensuração do efeito de algumas coisas, como é o caso de uma informação que se quer compartir. Mas se é uma experiência estética, um acaso, ou um prazer que se registra, é possível medir seu significado pelo número de curtidas? E qual o significado de “curtir”? Um mero gostar? Ou seria algo como: “eu concordo que essa foto é adequada para figurar num perfil do Facebook”? O “curtir”, nesse caso, seria “gostar” ou “assentir”? Seria um assentimento social ou um gosto pessoal o que qualifica o curtir? Mas voltemos.
O certo é que, ao fim, o sujeito tem mais satisfação como seu selfie quando obtém maior retorno social, isto é, quando pode ler esse efeito nos números. E os números, assim como as cartas, não mentem. Nem as cartomantes. É isso talvez o que explica que o selfie anda unido a um comportamento self philico, isto é, à selfilia, ao amor inveterado de si próprio. O comportamento selfilítico, o novo mal do século, faz com que o sujeito não possa se furtar a atuar como o paparazzi de si mesmo, que caça e persegue a si mesmo continuamente, a todo momento, no trabalho, na rua, no banheiro. Onde quer que ele busque refúgio, sempre ele consegue descobrir o esconderijo e surpreender a ele mesmo que, desde então, como nanocelebridade, não tem paz. Mesmo que ele se esconda embaixo da cama, ele vai surpreendê-lo ali. Ele invade toda intimidade dele mesmo.
Desde que, como caçador de selfies, cada um pode se entregar ao ofício de perseguir a sua própria celebridade como seu próprio paparazzi, nenhum abrigo é suficientemente seguro. Ou melhor, nada é minimamente indevassável. Para começar, o próprio Facebook tem o nome do antigo portfólio das modelos, com que apresentavam sua mercadoria às empresas. Um perfil do Facebook sem foto, na verdade, é a maior contradição possível no mundo contemporâneo. A foto, imagem, mesmo um mísero avatar, enfim, qualquer representamen, perfaz a essência do apresentação de si mesmo. Se for uma empresa, a logomarca tem esse papel.
A distinção entre vida privada e pública, empresa e indivíduo, intimidade e sociabilidade não fazem mais sentido. Em especial, a diferença entre vida do anônimo e vida da celebridade, desaparece. O interesse doentio pela vida de figuras tão inócuas quando as que vemos todos os dias nos portais, vidas inteiramente vazias e insignificantes de modelos, atrizes, atores, cantores, etc., só se explica pelo fato de que cada um, ao entrar no mundo do Facebook, se tornar o membro da comunidade das celebridades. Criar um perfil é o preço do ingresso. Facebook é isso, a comunidade das celebridades, mesmo daquelas que só o são para a família. Quando se aceita o papel de nanocelebridade, celebra-se um pacto com a mídia do entretenimento, saiba-se ou não. Nesse mundo, as coisas se tornam objetivas pelos números que as medem.
Isso é assim porque todos passam a viver dentro do mesmo sistema de medidas, que começa lá embaixo, com aqueles membros mais desafortunados das redes sociais, quase sem amigos (e sem curtidas), e vai subindo em direção aos superpopulares, aos superpops. Todos, contudo, são iguais, salvo pela diferença que uns tem muita projeção e outros pouca, ou nenhuma. Mas todos podem ser medidos e calculados. Nisso, na essência, são iguais. Mas como uns tem maior influencia social, tem por isso um preço maior.
O valor do merchandising, por exemplo, é cotado pelo número de seguidores nas redes sociais, especialmente no twitter. Quem tem 500 mil seguidores, em princípio, vale menos do que quem tem o triplo disso. Tirando que uns ganham muito, e outros nada, somos todos iguais. Mas a maioria das pessoas ‘lucra” com as redes sócias pela mera multiplicação dos meios que obtém através de seu perfil para sua vida prática. Amigos, contatos, participação em comunidades, vida digital ativa, tudo isso multiplica as oportunidades de acessos e realizações vitais. Mas aqui também uma pessoa vale quanto pesa. Tal como a res extensa de Descartes, que inaugura a filosofia moderna, pelo Facebook todos os relacionamentos sociais tornam-se quantificáveis. (É interessante notar que as informações qualitativas dos perfis, as “Informações básicas e contato”, “Detalhes sobre”, quase sempre não são preenchidas) A máquina dos números funciona por si só. Mede-se o número de curtidas, de amigos, de seguidores, de compartilhamentos, etc. Cada perfil deve ser administrado, e essa administração pode render maior visibilidade, se for mais competente. Ou seja, cada um é um empresário de si mesmo, e um contador do profite do seu profile, digamos assim. Lucra-se consigo mesmo, como as celebridades dos antigos circos de horrores, que se exibiam para o deleite do público. Mas agora todos estão expostos nas vitrines e todos avaliam as demais vitrines. O público se exibe para o público. Quanto maior o homem, maior o seu valor nessa arena. Até alcançar as dimensões do homem elefante, e seu valor de exibição.
Essa mesma mensuração, calculabilidade, peso determinado pelos números, se encontra nas diversas redes de exposição desse sistema de celebrização. Assim, não é a futilidade, imbecilidade ou o que seja da celebridade X que a faz diferente do cientista Y, ambos donos de um perfil no Facebook. De modo algum. Os dois são inteiramente iguais pelo estofo social e midiático que assumem. A diferença é que a celebridade X tem 10 mil vezes mais seguidores que a nanocelebridade conhecida como cientista Y. E em 99% dos casos acontece assim porque a celebridade é mais interessante e inteligente que o cientista, e por isso tem um público maior. Raros são os cientista que evoluíram além do vocabulário emplumado dos papagaios. E isso os torna muito chatos. Mas o que interessa é mostrar que não existe mais traçado qualitativo que isole categorias sociais entre si.
O característico do mundo social, como Hannah Arendt enfatizou, sempre foi promover a diferenciação, as distinções, entre as categorias. Sempre foi assim. As sociedades dão nomes (pai, mãe, filho, irmão, tio, chefe, etc.) e posições de dignidade aos seus membros. Distribui as posições de hierarquias (reis, sacerdotes, escravos, etc.), de superioridade e inferioridade, de valor ou desvalor, de respeito ou desonra, etc. Tudo isso são qualidades. (Na verdade, há uma diferença, mas é impossível expô-la aqui)
Hoje, com o predomínio das redes sociais, as diferenças qualitativas, vão se desfazendo na exclusiva diferença quantitativa, matemática. O que faz com que alguém tenha mais valor é o ter mais seguidores que outros. Não é pior nem melhor que antes, só bastante diferente em certos aspectos. Seja na China antiga, no Egito dos faraós, na Grécia dos filósofos, na idade média europeia, em todas as épocas, os poderosos quiseram ter o máximo possível. E os pobres os seguiram querendo também. A diferença hoje é que a rede social é uma máquina que expõe e processa de imediato para todos quanto cada um possui. Ou seja, cria a ficção de objetividade total. A loucura atual por devassar a intimidade alheia vem disso, do ímpeto de dar objetividade visível a tudo. O filme Free Rainer (Alemanha, 2007), trata bem dessa hipertrofia da visão.
As quantidades foram inicialmente qualidades hierárquicas, como mostrei em outro lugar. No título de Frederico II, o Grande, por exemplo, “grande” não significava enorme ou gigantesco, mas superior hierarquicamente aos demais reis da Prússia. Desde o início da sociedade humana, ‘grande’ significou superior. E diversos outros termos tiveram a mesma origem, o que não é o caso de apresentar aqui.
Hoje, toda “grandeza” é numérica. Assim, o que qualifica a posição do sujeito e sua distinção na sociedade é a sua quantidade. A sua qualidade é a sua quantidade. Todos os sujeitos sociais estão integrados num contínuo que vai desde os menos curtidos até os mais seguidos. Quando no início de 1945, Churchill propôs a Stalin na conferência de Ialta fazer do Papa um aliado, ouviu a seguinte resposta: “Tudo bem. As guerras são travadas com soldados, canhões e tanques. Quantas divisões tem o Papa?”
Essa é a questão agora. Cada um deve responder pela sua identidade dando os seus números: “Quantas curtidas vocês tem?”. Claro que poucas vezes as pessoas têm consciência disso. Mas intuitivamente todo mundo sabe, e não é raro ver os chamados mendigos de curtidas implorando migalhas aos amigos: “Me curte! Me curte! Me curte!”. A curtida é o tostão do mendigo digital. Acontece também, por exemplo, de às vezes vazar um vídeo pornográfico protagonizado por conhecidos e, nesse caso, as levas de pedintes vem bater à porta ensandecida: “O vídeo! O vídeo! O vídeo! Queremos o vídeo!” Aqui a paixão do ver (vídeos, tubes, etc.) se junta com o vício do selfie, ou seja, as sublimes perversões do ver (escopofilia) e do ser visto (selfilia). E essa pulsão de ver tudo não é, ela mesma, vista pelos agentes porque o “selfie” é uma espécie de pronome irreflexivo.
E com isso voltamos ao selfie. Afinal, essa curtida implorada é a do selfie. É interessante que nessa primazia do selfie sobre as demais experiências, ou melhor, sobre a própria experiência, o que sumiu foi o Self, isto é, o Si mesmo ou o Próprio, termos pelos quais se traduz a palavra inglesa. Nem somos mais Eus, porque há uma igualização de todos, nem temos mais nada próprio, já que o próprio envolve algum tipo de preservação ou pudor, alguma privacidade, mas agora se expõe o íntimo o tempo todo. É uma das armas mais eficientes da popularidade nas redes.
Esse assunto poderia continuar procurando-se entender a relação dele (em particular, da exposição da intimidade) com a era dos reality shows, que vai envelhecendo, e como nos dois casos, uma mesma ideia de gozar pela semi-delinqüencia de ultrapassar uma linha divisória entre o acesso e a invasão, entre o que seria interdito e o que se poderia ver, estão em ação. Tudo deve se tornar transparência, e o modelo de invasão ou do atentado contra a intimidade (Pânico na TV, CQC, etc.) é uma forma de entretenimento que é muito bem remunerado justo por oferecer ao seu público a perversa demolição da privacidade. Uma privacidade já reduzida ao mínimo, rala e suspeita, já que aqueles que se sentem feridos por essa invasão, que coloca centenas de milhares de olhos pelo buraco da fechadura, é em geral aquela celebridade que, também ela, deve profanar sua própria privacidade para obter visibilidade no mercado. O conceito dos programas citados é só o de um surf parasitário da visibilidade instalada pelo número e a demolição da intimidade. Ou seja, um surf sobre o selfie.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.
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