Marcelo Mirisola*
Um lutador decadente que inspira cuidados de uma mulher apaixonada e linda, tipo dona-de-casa fiel e resoluta – não importa se o lar dessa mulher é um puteiro ou uma loja de ração que vende lindos periquitinhos e filhotes de labrador. Randy vive de bicos, e ocasionalmente é lotado na seção de frios e laticínios de um supermercado. Seu chefe é um inseto que o humilha implacavelmente. Isso não o impede de rir de si mesmo e fazer piadas tristes sobre sua condição de “looser’. Taí um cara legal. Os amigos e “adversários” dele também são simpáticos e gente boa – éticos e leais, gigantes de coração e de bícepes. A falsidade da luta livre é tanto sinônimo de lealdade como de sobrevivência. Isso quer dizer que – perdoem-me o trocadilho – é somente dando muita porrada que se recebe uns trocos para levar mais porradas, fora e dentro do ringue. Algumas cenas de luta são memoráveis. Poderia apostar que a luta da tachinha foi inspirada na “Paixão de Cristo” de Mel Gibson. Aliás, tem muito sangue de Cristo derramado nesse filme. E esse tipo de sangue – todos nós sabemos – jamais seria derramado
Acho que já vi esse filme. Terá sido “Rock, o lutador
Ao longo dos anos, Mickey Rourke transformou-se numa figura de massinha. “Nojento, asqueroso” – segundo comentários que ouvi na fila da pipoca. Concordo. Mas pensei comigo mesmo: por que Stallone não provoca essa repulsa?
Talvez porque tenhamos nos acostumado com sua cara amassada e – apesar das plásticas – Stallone sempre será Rock Balboa, independentemente de ser Rambo, Cobra ou escalar a Juliana Paes para seu próximo filme, Stallone ainda é e sempre será Balboa: um pintassilgo desfigurado pela própria natureza anabolizada e sentimental – eu desconfio até que admiramos Stallone e relevamos sua canastrice porque ele nunca vai deixar de ser criança, nossa criança. Com Mickey Rourke é diferente. Ele não quer, e nem precisa do nosso colo. Nunca fez o tipo grandalhão com alma de passarinho. Acrescente-se que o cirurgião plástico dele atende
Randy- Carneiro é ofegante, manca. A cabeleira oxigenada amarrada em coque dá o tom do desamparo e descalibre. Acompanhamos – o tempo todo – o personagem pelas costas, como se fungássemos no cangote dele, como se ele fosse nossa caça. O carneiro está na iminência de ser abatido-enrabado, não só pelo gerentinho do supermercado ou pela filha lésbica, mas pelo público do cinema, que bem ou mal acaba se identificando com a “pureza” dele (porque o encara a partir do ponto de abate, a nuca). Talvez esse curto-circuíto seja o grande mérito do filme.
Tem uma cena inverossímil em que “Randy, o Carneiro” pega uma fã por trás. Na minha opinião, o máximo que Randy poderia fazer nesse caso era dar uma broxada. Diria até que se trata de um erro técnico: problema de continuidade. Mas isso é um detalhe. Vale que Mickey Rourke arrasta uma carcaça no lugar de um corpo. E junto a essa carcaça também arrasta (ele mesmo, nada a ver com o personagem) uma alma baleada e trôpega, cansada de guerra. O ator foi muito surrado pela crítica e pelos fãs, fez muito filme ruim e mereceu as porradas que levou – diga-se de passagem.
Talvez fosse exagero da minha parte dizer que “O lutador” é o filme da vida de Mickey Rourke. Mas não é exagero dizer que somente ele, e nenhum outro ator, poderia ter alcançado um resultado tão eloqüente: “Randy,o Carneiro” é sacrificado para a pequena salvação dos seus fãs ao som de Guns’N’Roses. Filmaço.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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