André Rehbein Sathler e Malena Rehbein Sathler *
Diz o ditado que à mulher de César cabia não somente ser honesta, mas parecer honesta. Mutatis mutandis, cabe à sociedade, se não completamente honesta, que pelo menos pareça que assim o seja. Afinal, é preciso ensejar confiança. Do ponto de vista do indivíduo, viver em sociedade é um investimento e, como tal, gera expectativa de retorno. Essa noção está na essência das chamadas teorias contratualistas do Estado: todos e cada um subscrevem um acordo de convivência mútua com respeito a determinadas regras do jogo, cujo respeito também depende de confiança.
Temos insistido neste espaço, em textos anteriores (leia em Desconfiança, a grande vencedora das eleições e em Um ano após vencer as eleições, a desconfiança continua a triunfar entre nós), que a descrença nas regras do jogo contribui para esgarçar o tecido social e pode levar a consequências imprevistas e imponderáveis. Essa descrença existe naturalmente, mesmo quando a sociedade tem reputação de ser honesta, pois entre governados e governantes sempre há uma grande assimetria de informações. Sua tendência é crescer, exponencialmente, quando, mesmo na aparência, não se consegue trabalhar com a presunção coletiva da inocência. É quando as regras tácitas de convivência se rompem.
Quando atores políticos importantes vêm a público e trocam acusações; assumem condutas criminosas ou imorais, alegando que os outros também assim o fazem; defendem-se com ameaças e chantagens; discutem abertamente os prós e os contras de comportamentos oportunistas; assinam notas de repúdio e dão abraços de apoio; esfacela-se qualquer imagem positiva que o governo possa ter. Como afirma o filósofo Roberto Romano, “não é permitido parolar sobre ética ou valores quando se atingiu o estágio presente do mundo. Nada do que assistimos é novidade, mas tudo vem potenciado de modo inaudito”.
Quando esses comportamentos, usualmente relegados aos bastidores ou à chamada política invisível, ocupam o proscênio, há indícios de que foi rompido um limite ético coletivo importante. Estimula-se naturalmente a desconfiança e o desrespeito às regras de convivência, já que tendo a obedecer porque vejo que meus concidadãos também o fazem (ainda que eu saiba que em toda sociedade há problemas pontuais nesse quesito).
Não se trata de defender aqui, de forma alguma, a legitimidade dessas atitudes, desde que mantidas longe do alcance dos olhos do público. Mas sim de alertar para o fato de que, mesmo acontecendo em pleno dia e diante dos olhos de todos, esses comportamentos não produzem mais indignação. Como se fossem naturalizados. Se as pessoas não reagem mais, é porque não acreditam mais no sistema ou porque limites éticos estabelecidos estão sendo rompidos e não há mais fronteiras morais, já que ética e moral andam juntas.
Supostamente, o sol deveria ser um bom desinfetante. Se não o é, é sinal de que a sociedade acostumou-se a conviver com as sombras. Zigmunt Bauman, em entrevista recente, afirmou que um dos marcos da pós-modernidade é a invasão da esfera pública por questões da vida privada. No Brasil da atualidade, assiste-se, de fato, ao sequestro da esfera pública por viciosos interesses privados. Esses, contudo, ao contrário daqueles que Mandeville previa que gerariam benefícios públicos, são vícios mesmo e só trazem prejuízos.
Quando Maquiavel rompeu com a unicidade da ética, postulando uma diferença axiomática entre o coletivo e o individual, com a preponderância do primeiro, abriu caminho para uma série de distorções praticadas em seu nome. Ao defender que determinados fins, políticos no bom sentido, justificariam os meios para serem alcançados, abriu caminho para o surgimento da razão instrumental e a instrumentalização da ética. Esta, quando praticada pelo nobre príncipe idealizado pelo florentino, seria virtuosa. Nas mãos de políticos menos afeitos a princípios de nobreza, leva ao mote de que “os fins, sejam quais forem, justificam os meios”. Assumido de forma explícita pela esfera política, esse mote perpassa para a sociedade. Ela percebe tal instrumentalização repudiando-a ou entendendo-a como um processo normal a ser seguido (os tais “é assim mesmo”, “todo mundo faz”).
Essa situação produz uma série de riscos sociais, dentre os quais se destacam a descrença generalizada, com o acirramento do individualismo e dos comportamentos oportunistas e o niilismo. Com a descrença, vem a indiferença e o afastamento do cidadão comum da política, que passa, cada vez mais, a girar em torno de si própria, com uma pequena elite se digladiando pelo naco maior de carne do Estado. Com o niilismo perde-se completamente a dimensão da esperança.
E aproximam-se da política aqueles que entendem o uso instrumental da ética como parte do jogo, reforçando o ciclo da política perversa. Esse é um dos caminhos possíveis neste momento. O outro é se apropriar do rompimento desses limites éticos para estabelecer, de fato, aqueles limites até então mais presentes no imaginário da sociedade do que em órgãos do Estado e entes privados (e, por que não?, também nos indivíduos). Deixar bem clara a diferença entre público e privado, o que se espera da conduta de um servidor do Estado, e criar mecanismos de controle efetivo sobre desvios estatais e privados. Ou seja, como se diz por aí e em textos religiosos, aproveitar para fortalecer o que vem para destruir. Sim, estamos num momento de rompimento dos limites éticos. O que ainda não se sabe é qual lado da corda vai sair vencedor.
* André Sathler Guimarães é doutor em Filosofia e coordenador do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Malena Rehbein Rodrigues é doutora em Ciência Política e docente do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara.