Eventos recentes têm chamado a atenção para a situação das populações faveladas, e por essa razão chamo a atenção para o livro Planeta Favela, do pesquisador e historiador Mike Davis (São Paulo, Boitempo, 2006), obra fundamental que se constitui em uma tremenda pesquisa – com tabelas, gráficos, estatísticas recentes – sobre o processo de favelização que ocorre paralelamente ao boom da urbanização no mundo todo. Ele diz: “As favelas, apesar de funestas e inseguras, têm um esplêndido futuro. Por um breve período o campo ainda conterá a maioria dos pobres do mundo, mas essa honra às avessas será transmitida para as favelas urbanas por volta de 2035. Dois bilhões de favelados em 2030 é uma possibilidade monstruosa, mas os pesquisadores da ONU advertem que já em 2020 a pobreza urbana do mundo chegará a 50% do total dos moradores das cidades”.
Para Mike Davis, as décadas de 1980 e 1990 assinalam o bigue-bangue da pobreza urbana, principalmente nos países em desenvolvimento da África, Ásia, América Latina, inclusive a Rússia. Aliás, o maior acontecimento dos anos 90 foi a conversão de boa parte do antigo Segundo Mundo – o socialismo de Estado europeu e asiático – em um novo Terceiro Mundo. No início da década de 90, aqueles considerados em extrema pobreza nos antigos “países em transição” dispararam de 14 milhões para 168 milhões: uma pauperização em massa quase instantânea e sem precedentes na história. Segundo pesquisadores do Banco Mundial, anteriormente a taxa não excedia a 6% a 10%; depois, 60% das famílias russas passaram a viver na pobreza.
Desde 1978, o tectonismo violento da globalização neoliberal e os planos de ajuste estrutural não só foram catastróficos como impuseram uma reconfiguração fundamental do futuro da humanidade: em vez de serem focos de crescimento e prosperidade, as cidades tornaram-se depósito de lixo de uma população excedente. Os fatos exógenos que precisavam de ajuste não foram atacados pelo FMI e Banco Mundial, os maiores deles sendo a queda dos preços dos commodities e os juros da dívida, mas todas as políticas nacionais e programas públicos foram cortados. O Plano Baker, de 1985, exigiu sem rodeios que os 15 maiores devedores do Terceiro Mundo abandonassem as estratégias de desenvolvimento conduzidas pelo Estado em troca de tomar novos empréstimos e de continuar participando da economia mundial. E esse era o admirável mundo novo do chamado consenso de Washington.
Por toda parte, o FMI e o Banco Mundial, agindo como delegados dos grandes bancos e apoiados pelos governos Reagan e George H. W. Bush (Bush pai), ofereceram aos países pobres o mesmo cálice envenenado de privatização, desregulação, abertura de mercados, remoção dos controles da importação e subsídios alimentares, obrigação de repor os gastos com saúde e educação e enxugamento do setor público. A dívida foi o viveiro duma transferência de poder sem paralelo dos países do Terceiro Mundo para as instituições de Bretton Woods, controladas pelos Estados Unidos e outros países capitalistas centrais. A equipe profissional do Banco Mundial é o equivalente pós-moderno do serviço público colonial, resume admiravelmente o autor.
Citando The Challenge of Slums (UM-Habitat. Londres, Earthscan, 2003), Davis observa que a causa principal do aumento da pobreza e da desigualdade nas décadas de 80 e 90 foi a retirada do Estado. Ele observa: “Na América Latina, a partir do golpe neoliberal do general Pinochet em 1973, o ajuste estrutural esteve intimamente associado à ditadura militar e à repressão dos movimentos populares. Um dos resultados mais espantosos dessa contrarrevolução hemisférica foi a rápida urbanização da pobreza. Amplos setores da classe média instruída viram-se nas fileiras dos novos pobres. Em alguns casos, a mobilidade ladeira abaixo foi quase tão repentina quanto na África. Mas os mesmos ajustes que esmagaram os pobres e a classe média abriram oportunidades lucrativas para privatizadores, importadores estrangeiros, narcotraficantes, oficiais militares e políticos. O consumo ostentatório chegou a níveis estratosféricos”.
Segundo pesquisas do Human Development Report/2004, em 46 países o povo está mais pobre hoje do que em 1990 e em 25 países há mais gente faminta do que há uma década. Em todo o Terceiro Mundo, uma onda de PAEs e programas neoliberais voluntários aceleraram a demolição do emprego público, da indústria e da agricultura para o mercado doméstico. Davis assinala sinistramente: “A desigualdade global, medida pelos economistas do Banco Mundial na população do mundo todo, atingiu um inacreditável coeficiente de Gini de 0,67 no final do século – o equivalente matemático de uma situação em que os dois terços mais pobres do mundo recebem renda zero e o terço mais alto recebe tudo.”
Próxima coluna, voltamos ao assunto.
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