”A sociedade que nos violenta, acredite, é a mesma que nos leva para a cama.”
(Fernanda Benvenutty, da Antra – Articulação de Travestis Transexuais)
Maria Cláudia Cabral*
Aprende-se, em introdução ao estudo do direito, que o seu direito de socar termina a pelo menos um centímetro da ponta do nariz do outro. Assim como o direito de expressar pensamentos e convicções acaba quando põe em risco a dignidade, a auto-estima, a honra e o sentimento de pertencimento de outrem. Há uma dicotomia no direito que está entre o ser e o dever ser. E o que é nem sempre coincide com o que deve ser. Em nosso país existem cidadãos e cidadãs tratados como de segunda classe, invisibilizados ou com identidades distorcidas, direitos mitigados ou a quem outros cidadãos e cidadãs – estes supostamente de primeira classe – devem ‘tolerar’, e sequer toleram.
A chamada Lei de Enfrentamento à Homofobia, PLC 122/06, trata pedagogicamente quem tem dúvidas quanto ao direito de igualdade de tratamento, especialmente respeitadas as diferenças e a diversidade. O projeto consiste basicamente em punir aqueles cidadãos e cidadãs que acreditam que o direito de livre expressão é ilimitado, não importa a quem atinja, e que ter uma orientação sexual diferente do supostamente normal é pecado, é feio e incomoda. A proposta ampara brasileiras e brasileiros que todos os dias veem desrespeitados sua dignidade, sua integridade física e, lamentavelmente, muitas vezes, seu direito à vida.
Há quem propositalmente deturpe a proposta de lei, em nome da liberdade de expressão ou da liberdade de credo. Honestamente, não faz qualquer sentido. Todos nós continuamos com nosso direito de livre expressão do pensamento, dos sentimentos, das crenças, dos afetos, das escolhas. Perfeitamente amparada pela Constituição, como deve ser, a lei em análise apenas alerta e pune pedagogicamente aqueles que não compreendem que o limite de sua livre expressão é a dignidade de pessoas que pensam, sentem, creem, gostam ou se orientam de forma diferente, mas pagam impostos e trabalham igual a todos.
Há aqueles que usam a religião para amparar tal discurso, esquecendo-se que vivemos num Estado laico, isto é, que não se submete à religião e onde a religião é livre escolha de cada indivíduo. Estes demonstram em seus discursos vazios que ou não respeitam a Constituição republicana ou usam a ignorância do povo para ludibriá-los. Nos dois casos, tais pessoas enchem de vergonha e desrespeitam cidadãos e cidadãs que escolheram pela democracia representativa constituir um Estado laico, por meio da Carta Magna de 1988. Parlamentares que não compreendem e não respeitam a Carta Maior não podem ser parlamentares.
Por outro lado, estes mesmos elevam suas vozes em afetada emoção falando em nome de Deus, esquecendo o mais elementar dos mandamentos das religiões judaico-cristãs – não usar o Seu santo nome em vão – aprendido por crianças de cinco ou seis anos nas aulinhas de catecismo e nas escolas dominicais. Não satisfeitos, quando no exercício da missão pastoral – ou em nome dela –, utilizam os púlpitos do Congresso, incitam seus fiéis eleitores a descumprir outros mandamentos cristãos, conclamando-os ao ódio, ao desrespeito e ao desprezo àqueles que têm orientação sexual ou religiosa diferente dos demais. Se não me falha a memória, Cristo deixou como maior e mais importante mandamento no novo testamento o amor, sentimento/conduta orientadora do cristianismo e cuja importância para os que se dizem cristãos está claramente exposta em carta de Paulo aos Coríntios.
Mas não cabe julgá-los por sua atuação como ‘pastores das ovelhas do Cristo’, especialmente se conseguem convencer seus fiéis/eleitores a acreditarem que falam em nome de Deus palavras de ódio e de intolerância. Ainda assim, é bom lembrar aquelas lições aprendidas – quando crianças – nas missas ou cultos dominicais sobre a quem cabe julgar quem quer que seja’.
É ao direito que se recorre, ao direito fundamental das identidades e da diversidade, da intimidade e da liberdade de ser quem se é e de fazer as próprias escolhas, sem ser molestado ou insultado; do direito à vida e à integridade física, emocional e psíquica. Assim que a relatora do PL 122 usou de pleonasmos, suprimiu artigos para tentar garantir que tais direitos sejam honrados, para, num gesto de tolerância, conseguir o apoio daqueles que andam a usar conceitos jurídicos para confundir crédulas/os cidadã/os de bem.
Por isso, importa clamar que respeitem a Constituição do país, respeitando cidadãos e cidadãs, independentemente de orientação sexual, de sexo, de raça, de idade ou de etnia e que apóiem o PL 122/06. Sanção a todos que insistirem em desrespeitar, por atos ou palavras a dignidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis! Punição exemplar para os que desacatam seus iguais em razão das diferenças. E o afastamento daqueles que, tendo feito um juramento de respeito à Constituição do Brasil, o violam diuturnamente ao confundir Estado e igreja.
* Cidadã brasileira, escritora, advogada, mulher e mãe.
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