Fábio Góis
A história se repete. Nos últimos lances do ano legislativo, parlamentares preparam um reajuste que pode elevar de R$ 16,5 mil para R$ 26,7 mil os seus próprios salários. Um reajuste de, nada mais nada menos, 61,7%, a incidir já no contracheque de fevereiro de 2011. Hoje (terça, 14), uma reunião prevista para as 20h, na Primeira Vice-Presidência da Câmara, servirá para dar início à formulação de um texto final que, com obrigação regimental e constitucional de ser levado ao Senado antes de ir ao plenário, pode equiparar os vencimentos dos congressistas aos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (R$ 26.723, teto remuneratório do funcionalismo público).
O texto, que está sob responsabilidade do quarto-secretário da Câmara, Nelson Marquezelli (PTB-SP), deve ser formulado na forma de projeto de decreto legislativo, por imposições regimentais. Uma vez aprovado pelos parlamentares, o texto será promulgado (sem precisar de sanção presidencial). O deputado disse ao Congresso em Foco que, ao contrário do que tem sido noticiado, ainda não há um texto pronto, mas apenas uma noção geral dos critérios de reajuste a serem definidos.
“Vamos começar a conversar. Temos que conversar muito ainda”, admitiu Marquezelli, confirmando que deputados querem aproximar os rendimentos ao valor máximo praticado no funcionalismo público. Para o parlamentar paulista, não há porque temer a repercussão negativa de mais um reajuste. “Está na Constituição. Nós precisamos fixar um valor e votá-lo para a próxima legislatura”, ponderou, acrescentando que não são válidas as comparações com o aumento de poucos reais para o salário mínimo, na discussão orçamentária em curso no Congresso.
“São milhões os que ganham salário mínimo. E, aqui no Congresso, são apenas 513”, declarou, deixando de mencionar os 81 senadores e no risco de um efeito cascata nos vencimentos dos demais servidores públicos.
A remuneração atual foi reajustada em junho de 2007 – o mais recente percentual de aumento foi de 28%. No ano anterior, o Psol foi ao Supremo para contestar os critérios de reajuste, mas não conseguiu evitar o aumento.
Embora já haja uma previsão de que a matéria seja posta na pauta de votações do plenário já nesta semana, Marquezelli diz que a apreciação do reajuste ficará para os primeiros meses do ano, assim como a peça orçamentária de 2011. Mas o Senado tem de ser avisado antes e decidir se aceita votar uma medida recorrentemente vista como impopular, em razão da disparidade secular de distribuição de renda no país.
“Tem de ser uma coisa combinada com o Senado. Não creio que eles [os deputados] vão querem apanhar sozinhos da opinião pública, depois da repercussão na imprensa. Se o Senado não sinalizar que quer votar, não acho que eles levem a ideia adiante”, disse à reportagem um regimentalista do Congresso, que prefere não ser identificado.
Obscuridade
Voz dissonante da quase totalidade dos integrantes da Câmara, o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) estranhou a realização da reunião desta terça-feira (14). “É a velha tradição de, no apagar das luzes, levar à votação coisas obscuras”, declarou ao site o parlamentar fluminense, lembrando que seu partido defende, “desde 2003”, que os reajustes parlamentares sejam submetidos à média do que é concedido a todo o funcionalismo público, ou com base na reposição da perda inflacionária anual.
Segundo Chico, dorme nas gavetas da Câmara a Proposta de Emenda à Constituição 207/2003, apresentada pelo Psol um ano depois de o STF ter declarado a inconstitucionalidade da tentativa de a Câmara aumentar os subsídios por meio de ato da Mesa Diretora. O deputado diz que a PEC define critérios claros de reajuste a ser concedido para o exercício da legislatura seguinte, “com redução de outros gastos da Câmara”.
“Por que tem de equiparar [aos vencimentos dos ministros do Supremo]? Nossa remuneração permite um bom exercício do mandato. Mas parece que tem coleguinhas que não pensam assim…”, lamentou Chico, para quem “penduricalhos” como a verba indenizatória, que custa R$ 15 mil aos cofres públicos, são úteis, mas apenas “para quem não é rico”.
A PEC 207/2003 (confira a íntegra) acrescenta parágrafo ao artigo 39 da Constituição Federal, fixando critérios para a revisão dos subsídios dos membros de Poder e demais representantes de cargos eletivos, ministros e secretários estaduais e municipais. O texto da proposta contextualiza a necessidade de restrição de despesas e observância aos ditames da responsabilidade fiscal.
“Conscientes da necessidade dessas providências austeras, não podem os membros de Poder, os detentores de mandato eletivo, os ministros de Estado e os secretários estaduais e municipais, partícipes da condução dos altos desígnios do Estado Brasileiro, furtarem-se a colaborar com o esforço de redução dos gastos públicos”, diz trecho da proposta que, protocolada em 19 de dezembro de 2003 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, teve como ação mais recente a designação, em 25 de março de 2009, do deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) como seu relator. O detalhe é que Aleluia não se reelegeu. Logo, não relatará a matéria.
Efeito cascata
Um dos problemas no modelo atual de concessão de reajuste para membros da administração pública é o chamado “efeito cascata” – em que o aumento tem de ser estendido às demais categorias em câmaras municipais, assembleias legislativas etc, como determina a Constituição. Segundo a legislação em vigor, deputados estaduais têm direito a até 95% dos rendimentos pagos aos colegas de Brasília, enquanto vereadores têm seus subsídios definidos entre 20% e 75% do que é pago aos estaduais. O aumento no contracheque no Legislativo federal pode beneficiar mais de 52 mil vereadores e mil deputados estaduais em todo Brasil.
Mas, se depender de nomes como o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), a matéria deve passar também pelo Senado. “Deve haver reajuste, é hipocrisia pensar diferente. E o Senado deve participar das discussões”, disse o senador.
Opinião diferente tem o líder do Psol no Senado, José Nery (PA). “Em tempos em que se fala de contenção de gastos públicos, eu creio que simplesmente reajustar o salário para este patamar não seja a melhor medida neste momento”, observou Nery, que vai participar da apreciação da matéria para a próxima legislatura, mas também não retorna ao Senado.
Para o senador, tais reajustes estão na contramão da austeridade fiscal de que o país necessita em épocas de transição de governo. Ele criticou também a forma como a discussão é feita na Câmara. “Infelizmente, essa tem sido uma prática que, volta e meia, tem desafiado o bom senso. Seria de bom tom cortar esses reajustes, sobretudo para os parlamentares, que já estão bem contemplados”, acrescentou, resignando-se em relação à chegada da matéria no Senado.
“Infelizmente, [o texto do reajuste] vai ser aprovado de qualquer maneira quando chegar aqui”, concluiu, reclamando ainda do abismo entre o salário mínimo e os altos subsídios da administração federal. “[O mínimo] está muito distante do patamar que o próprio Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos] historicamente defende, bem como as centrais sindicais, que estão em sintonia com as causas trabalhistas.”
Orçamento bilionário
O orçamento de Câmara e Senado para 2011 está previsto em R$ 7,4 bilhões, segundo a proposta de diretrizes orçamentárias em análise no Congresso. Isso significa 20% a mais do que foi reservado na proposta orçamentária do ano passado. Apenas na Câmara, o reajuste significará um impacto extra de R$ 130 milhões anuais, a variar de acordo com o reajuste final aprovado.
Mas há um problema de última hora. A Comissão Mista de Orçamento (CMO), que reúne deputados e senadores, terá de decidir como solucionará as implicações do anúncio feito pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de reestimativa de arrecadação tributária para baixo – previsão de corte de R$ 8 bilhões em relação ao projeto original encaminhado aos parlamentares.
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A intenção de reajuste em discussão na Câmara também vai levar à alteração de subsídios do presidente da República (134%), que hoje é de R$ 11,4 mil, e dos ministros de Estado (130%), que recebem R$ 10,7 mil mensalmente. Ou seja, a proposta em gestação na Câmara pode fazer com que a presidente eleita Dilma Rousseff receba mais do que o dobro do que o que foi registrado, nos últimos oito anos, no contracheque do presidente Lula.
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