Marcelo Mirisola*
Acho que é a ração. Só pode ser: a cachorrada, hoje, é mais barulhenta e literalmente – desculpem o palavrão logo no começo do texto – “caga” em cima da paisagem. Não há pôr-de-sol, nem maciço de montanhas que resista aos latidos e uivos desses animais. Eles latem por qualquer coisa, independente da madrugada gelada e da lua cheia. Se porventura – e apesar do au au au –, alguém achar um pote no final do arco-íris, pode ter a certeza de que “ouro” não fede nem tem aparência pastosa. A cachorrada estraga o que estiver pela frente (e o que está oculto também). Não existe devir, nem trégua para eventuais assombrações. Os fantasmas precisam de uma atmosfera lúgubre, e séria. Não dá para assombrar no meio de um pagode. Cachorro é bicho pagodeiro. Invade os cinco sentidos, onde a audição é apenas uma porta de entrada.
Não importa se você está na praia ou no campo, numa casinha de sapé ou numa mansão, os malditos cães estragam irremediavelmente a paisagem, e são muitos, desde enormes pit bulls mal encarados até pequenas frescuras de madame em forma de bolotas de neve. Do grave ao agudo, todos são estridentes e insuportáveis. Quer dizer, todos menos os vira-latas. Que, nas grandes cidades, perderam o espaço para os mendigos, e esses, por sua vez, passaram de pedintes a mutantes achacadores. Se você não tiver um troco, é capaz de ouvir um sermão-apocalipse em forma de rap. Os poucos vira-latas que sobraram (diferente dos mendigos e dos síndicos) continuam com o rabinho enfiado entre as pernas – como sempre simpáticos, sorridentes e gentis.
As velhinhas do meu prédio morrem de medo. Temo pelas velhinhas: não bastasse ser quase impossível sair às ruas por conta da intimidação dos mendigos, agora vão ter de se trancar em suas quitinetes por conta dos latidos do síndico. Um Pit Bull que se prevalece da condição de ser entrevado. Se um cão sobre as quatro patas já é um perigo, imaginem a violência represada de um espécime imobilizado numa cadeira de rodas, e sem focinheira.
Um parêntese. Trato do “síndico do meu prédio” à guisa de investigação. Imagino que ele, ao feitio dos neomendigos e dos pit bulls, também é um mutante. Uma nova espécie na fauna brasileira. Deixou de ser apenas um sintoma, e proliferou-se mais do que a dengue. De norte a sul do Brasil. Tenho relatos e estatísticas do Ministério da Demência que apontam nesse sentido. O caso é grave! Isso posto, creio que posso continuar minha ficção.
Vamos
Naqueles tempos, de outrora, tempo dos vira-latas, tanto fazia se eram cães ou gatos, lembro, distintos senhores atravessavam as ruas e iam fazer compras na Mesbla, os síndicos… ora, os síndicos eram síndicos.
Cientes da condição de síndicos, assumiam o fardo com a compostura e a liturgia correspondentes ao cargo. Eram chatos, e usavam galochas. Alguém tinha de fazer o serviço. Eles, os síndicos, cumprimentavam, eu lembro; diziam bom dia, boa tarde e boa noite. Do outro lado, os condôminos diziam “por favor, e obrigado”. Ambos, síndicos e condôminos, perguntavam das respectivas famílias, e lamentavam “a passagem dos entes queridos”. Eu lembro, claramente, os síndicos eram babacas, mas não latiam. Ah, isso não.
Naquela época – e nem faz tanto tempo –, era uma vergonha não prestar as devidas contas, e os mendigos pediam esmolas igualmente envergonhados. Mas aí inventaram uma tal de ração balanceada. Os gatos, claro, embora consumidores (ninguém se livra da seção de frios, rações e laticínios), não caíram nessa esparrela. Apesar de terem assumido o poder sobre os homens desde os tempos de Ramsés III, continuam os mesmos de sempre – aparentemente indiferentes, todavia sóbrios. Não ouço gato disputando primazia de miado com outros gatos, o interesse deles é metafísico. A elegância intrínseca. Para que fazer barulho, ou seja, para que latir, né?
Já os síndicos e os cães apenas fizeram prevalecer suas respectivas naturezas selvagens: viraram mendigos de sua antiga condição. Mutantes. Daí que perderam completamente o pudor, e ameaçam invadir o oratório das velhinhas, transferir suas carrancas para os porteiros boa-gente, e ameaçam interditar o hall social e invadir o Irã e o Oriente Médio a reboque, aos latidos. Estão todos loucos, turbinados de hormônios e carros blindados e, não bastasse, consomem sais minerais e complexos vitamínicos que insuflam mais e mais violência.
Assim, esses animais bombados e enfurecidos nem se dão ao trabalho de escolher suas vítimas; começam a carnificina na própria casa e, ao menor sinal de contrariedade, atacam: num dia matam suas crianças, no outro os condôminos e as velhinhas indefesas. Insaciáveis, partem à caça dos vira-latinhas, e em seguida, trucidam-se uns aos outros, são canibais por excelência.
Os mais fortes e mais truculentos necessitam de quantidades industriais de violência e carnificina. Existem Arenas para tanto. Verdadeiros Coliseus para se digladiar. Shoppings, Igrejas, universidades particulares, ONGs e toda sorte de organização antropofágica que os auxilia nesse sentido. Menos o Zé Celso, quero crer. Toda a carnificina é documentada em tempo real, os grupos de comunicação e seus desdobramentos mais sórdidos estão a serviço da barbárie (vale dizer: a serviço dos síndicos); são oitenta canais e mais um monte de domingões e faustões clonados, sites e blogs que reproduzem a rinha e os latidos desses animais enfurecidos, academias de ginástica, clínicas de cirurgia plástica e uma bela vista de frente para o mar também constam do arsenal, e estão à disposição (se quiser, pode parcelar em 48 vezes) junto às vísceras do inimigo – que são igualmente parceladas e refletidas num espelho opaco, para dar a sensação de vitória e diferença. Mas não se enganem, vísceras são vísceras. São todos iguais. Isso sem falar nos serviços delivery. É a guerra! Uma guerra de aleijões e covardes, mas é guerra! Alta tecnologia e farta baixaria. Embora tentem dizer que não, e gastem uma fortuna para dizer que eles nem parecem eles, todos amam Jorge e cobram os famigerados 12 % ao mês, e têm a mesma cara, digo, focinho.
Eles são – repito e acrescento – canibais por excelência, e vocação. Ontem foi a cueca suja do traficante colombiano. Hoje se banqueteiam com a desgraça do Pai e da Madrasta Pit Bulls, e amanhã estarão vibrando com as Olimpíadas e o próximo feito (ou desfeito, tanto faz) de um igual, todos irmanados a Fátima Bernardes e Galvão Bueno. Padre Marcelo, Lúcifer e a Xuxa que os apadrinhem.
As situações são diferentes apenas na aparência, o conteúdo é o mesmo. Crianças são jogadas pela janela, e cuecas de grife são reusadas para dar tesão a essa matilha. O que importa é a audiência, o índice, e os recordes. O Pit Bull que esculpiu a focinho do Abadia, aliás, é o mesmo que esculpiu o sorriso da atriz da novela das oito. Não por acaso, é o mesmo focinho da mulher do síndico do meu prédio. Esses cães são fiéis aos seus fornecedores. Somente aos fornecedores. A culpa deve ser da ração, só pode ser.
Eu temo pelas velhinhas. Para essa cachorrada, o tempo da delicadeza jamais existiu (apenas para o Chico esse tempo existiu, e foi antes de ele se meter a copiar o Ítalo Calvino). Por fim, quero lembrar que gato escaldado tem medo de água fria. Também faço questão de reiterar meu pedido: não dêem esmolas a ninguém. Cuidem-se.
Ps.1. Algumas correções: semana retrasada esqueci de dizer que a primeira versão da “Receita para escritores fofos” foi publicada no blogue do Mario Bortolotto. Depois que foi o Randall, e não exatamente os meus arquivos, quem me lembrou que eu havia escrito a receita.
Ps.2. Publiquei um conto inédito, “Spaghetti Espiritual”, na revista Bravo! deste mês. A revista já está nas bancas.
Ps 3. Quem quiser pode mudar o título desta crônica para "Ronaldinho e os três travestis". Eu tratei do "caso Ronaldinho" quando não falei das Olímpíadas chinesas, quando não falei do austríaco que é avô e pai dos seus netos e não falei da passeata pró e contra a maconha. Por outro lado, tratei do "caso Ronaldinho" quando falei do Pe. Marcelo, da Xuxa e de Lúcifer, da garotinha jogada pela janela e do sorriso cúmplice e quentinho da Fátima Bernardes, toda noite a dizer boa noite. Tanto faz falar ou não falar. Dá na mesma. Aliás, nós e o Ivan Lins, somos todos iguais nessa noite. Que não termina nunca.
* Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).
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