José Rodrigues Filho *
Depois das denúncias de espionagem praticadas pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, que chegaram a atingir a presidenta Dilma Rousseff e o alto escalão do governo brasileiro, os riscos da tecnologia biométrica começam a ser considerados, por oferecer um falso senso de segurança, principalmente nos países em desenvolvimento.
Recente artigo da revista Scientific American sobre o uso da tecnologia biométrica na área de segurança afirma que, infelizmente, a mudança para a segurança habilitada pela biometria cria profundas ameaças às noções de segurança e privacidade, comumente aceitas. Para a Scientific American, a biometria pode tornar os sistemas de vigilância existentes em algo novo – algo mais poderoso e cada vez mais invasivo, sobretudo diante da falta de regras que devem ser estabelecidas para a governança destas tecnologias.
A inexistência de uma legislação disciplinando o uso dessas tecnologias, com ampla capacidade de violação de privacidade, poderá torná-las mais danosas do que as práticas atuais de espionagem da NSA. Para a revista acima citada, o status legal de muitos tipos de dados biométricos não é claro. Os legisladores (Congresso Nacional) são os únicos que podem nos oferecer alguma proteção contra o mau uso de dados biométricos. Mesmo assim, entendem que nem sempre acompanham os avanços da tecnologia, o que dificulta definir princípios que orientem o seu uso.
Assim sendo, alguns dos mais invasivos sistemas de vigilância estão sendo implementados em países onde os indivíduos são colocados em riscos. Os países em desenvolvimento são considerados mercados propícios para o crescimento da tecnologia biométrica, a exemplo dos sistemas nas áreas de saúde, serviço eleitoral e de vigilância visual, onde nem sempre os cidadãos destes países dispõem de meios legais e técnicos para se defenderem. A posição das autoridades nestes países é a de levantar o máximo de informações, sem levar em consideração as questões de direitos humanos e as relações entre privacidade, segurança e desenvolvimento.
Algumas instituições internacionais como a Fundação EFF (Eletronic Frontier Foundation), International Privacy, entre outras, começam a avaliar as exigências constitucionais, convenções de direitos humanos e normas de proteção dos consumidores, diante da preocupação com o abuso de autoridade nestes países e os riscos que acompanham os cadastros e banco de dados biométricos, extremamente vulneráveis, podendo ser explorados até por criminosos. Diante disso, a proliferação dessas tecnologias em países da América do Sul, como Peru, Argentina e Brasil, além de outros na Ásia e África, começa a receber severas críticas, considerando a falta de proteção legal da população e a possibilidade de que tais cadastros e banco de dados possam ser utilizados pelos governantes destes países para atender seus interesses de espionagem.
No momento, o que está chamando a atenção do mundo é a fragilidade e falta de segurança do cadastro biométrico da Argentina, quando em outubro de 2013 um jovem de 16 anos descobriu como quebrar o cadastro eleitoral da população, dando acesso a fotos dos eleitores, as quais foram cadastradas pelo serviço eleitoral. O próprio governo, que antes recebeu repetidas advertências sobre a vulnerabilidade do sistema, não tem tido a habilidade de explicar o que aconteceu, tornando o sistema cada vez mais desacreditado. O site do registro eleitoral encontra-se desligado. Considerando que milhares de fotos dos eleitores argentinos foram acessados, estamos diante de um ato inconstitucional e uma violação de direitos humanos.
Na Índia, são contundentes as críticas feitas ao registro biométrico da população, considerando o envolvimento de várias empresas públicas e privadas e da própria CIA. A população tem sido convocada para ser contra os avanços ilegítimos do Estado. No momento, a situação é muito confusa. Inicialmente o governo determinou que o registro biométrico fosse obrigatório, ameaçando a população com o corte de benefícios sociais. Em seguida, uma comissão parlamentar questionou o direito do governo de coletar dados biométricos, considerando que isto seria um assalto aos direitos democráticos dos cidadãos. Em outubro passado, a Suprema Corte da Índia definiu que o programa de registro biométrico não podia ser obrigatório e a população não poderia sofrer nenhum dano em relação ao recebimento de benefícios sociais.
No Brasil, o que se observa é a passividade e a falta de debate em relação ao uso da tecnologia biométrica. Estamos vivenciando o chamado recadastramento biométrico, o qual está sendo feito sem oferecer e mostrar aos eleitores brasileiros o arcabouço legal apropriado e destinado a proteger a segurança, a privacidade e os direitos humanos. Além disso, os mecanismos de proteção e segurança dos dados dos cidadãos são totalmente desconhecidos. Há pouco tempo noticiou-se que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estava prestes a repassar dados dos eleitores, sem o conhecimento e permissão deles, para uma empresa privada internacional. Será que não estamos diante de um ato de violação de direitos humanos, privacidade e traição? Por que espionar os olhos dos eleitores brasileiros? Se o armazenamento e mineração de nossos dados são feitos por empresas privadas, de forma legal e legitimada, a questão que se levanta é a seguinte: por que o governo considera estes dados serem um ativo nacional? Não há uma divulgação das empresas envolvidas com o recadastramento biométrico no Brasil.
Além disso, a situação do Brasil parece paradoxal. De um lado, a presidenta Dilma Rouseff vai à ONU condenar a espionagem americana. De outro lado, o governo permite que tecnologias de controle, que podem encarnar a NSA, sejam utilizadas na gestão pública sem a devida proteção de privacidade e direitos humanos. Espera-se que o governo mova ações junto ao Congresso Nacional para definir uma legislação destinada a proteger os cidadãos brasileiros, no tocante à coleta de dados no país, incluindo o recadastramento biométrico, que está sendo feito de forma obrigatória.
Como na maioria dos países em desenvolvimento, o Brasil é carente de uma legislação que limite a quantidade e o tipo de dados que o governo possa coletar dos cidadãos brasileiros e o local onde tais dados sejam armazenados. É preciso restringir a relação entre diferentes dados biométricos num único banco de dados, a exemplo do que está sendo feito através do recadastramento biométrico. Além disso, a sociedade deve ser informada que seus dados estão sendo armazenados da forma mais segura possível, não podendo ser manipulados por empresas privadas. Como tudo isto ainda pode ser realizado pelo governo, não podemos ainda julgar que estamos diante de um caso de hipocrisia.
* Professor da Universidade Federal da Paraíba. Foi pesquisador nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins (EUA). http://jrodriguesfilho.blogspot.com/
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