De como a visão aguda de Conceição Tavares desnuda o cara
Muito se disse e se cogitou quando da passagem de Obama pelo Brasil e de tudo que li e reli a respeito, nenhum retrato foi mais vívido do presidente americano, nem painel mais preciso da atual conjuntura interna e externa dos EUA, do que o apresentado pela economista Maria da Conceição Tavares, em entrevista à Carta Maior.
Duma perspectiva sombriamente realista, para ela, os EUA se tornaram um país politicamente complicado, para o qual não bastam boas idéias. Obama até que as tem algumas , mas não tem o principal: poder real. Não tem bases sociais compatíveis para implementar suas ideias. A estrutura da sociedade americana hoje é a mais conservadora da sua história. Convenhamos: Obama não é nenhum um iluminado. Aliás, nem o Lula daria certo lá. Apesar de ter sido eleito a partir de uma mobilização real da sociedade, exerce um governo sem base efetiva: seu eleitorado é constituído massivamente pelos jovens e negros. Porém, nem a juventude nem a população negra têm presença institucional, pelos padrões democráticos norte-americanos: não detêm postos-chave onde se decide o poder. No limite, as bases de Obama não se localizam em parte alguma: não estão no Congresso, não comandam as finanças. Elas gritam, mas não decidem.
Conceição é categórica quando afirma: Os EUA estão congelados por baixo. Há uma camada espessa de gelo que dissocia o poder do presidente do poder real hoje exercido, em grande parte, pelas finanças. Os bancos continuam incontroláveis; o FED (o Banco Central americano) não manda, não controla. O essencial é que estamos diante de uma sociedade congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso, os bancos detêm a hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada…
Ironicamente, ainda que seja desagradável lembrar, os EUA chegaram a isso guiados, em boa parte do caminho, pelas mãos dos democratas de Obama. Foram os anos Clinton que consolidaram a desregulação dos mercados financeiros autorizando a farra que redundou em bolhas, crise e, por fim, na pasmaceira conservadora. Mas se tal colapso foi pedagógico afinal, o poder financeiro ficou nu , por que a reação demora?
Ainda segundo a economista, a sociedade americana sofreu um golpe violento. No apogeu, vendia-se a ilusão de uma riqueza baseada no crédito e no endividamento descontrolados. Criou-se uma sensação de prosperidade sobre alicerces fundados em papagaios e pirâmides especulativas. A reversão foi dramática do ponto de vista do imaginário social. Um despencar sem chão. A classe média teve massacrados seus sonhos do dia para noite. A resposta do desespero nunca é uma boa resposta. A resposta americana à crise não foi uma resposta progressista.
Na verdade, está sendo de um conservadorismo apavorante. Forças e interesses poderosos alimentam essa regressão. A tecnocracia do governo Obama teme tomar qualquer iniciativa que possa piorar o que já é muito ruim. Quanto vai durar essa agonia? Pode ser que a sociedade americana reaja daqui a alguns anos. Pode ser. Eles ainda são o país mais poderoso do mundo, diferente da Europa, que perdeu tudo, dinheiro, poder, autoestima… Mas vejo uma longa e penosa convalescença. Nesse vazio criado pelo dinheiro podre Obama flutua e viaja para o Brasil.
Aliás, uma viagem pontuada de efeitos especiais; a mídia (leia-se PIG) querendo demarcá-la como um divisor de águas de repactuação entre os dois países, depois do estremecimento com Lula. Bobagens. Obama vem, sobretudo, tratar dos interesses norte-americanos. Petróleo, acima de tudo, já que dependem de uma região rebelada, cada vez mais complexa, e querem se livrar da dependência em relação ao petróleo da Venezuela.
Quanto ao assento brasileiro no Conselho de Segurança, Conceição não tem ilusões: Obama poderá fazer uma cortesia de visitante, manifestar simpatia ao pleito brasileiro, mas, de novo, está acima do seu poder. Não depende dele. O Congresso republicano vetaria. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. Sem contar que Obama não é Lula e não tem as bases sociais que permitiram a Lula negociar uma pax acomodatícia para avançar em várias direções. A base equivalente na sociedade americana os imigrantes, os pobres, os latinos, os negros , em sua maioria, nem vota e, acima de tudo, está desorganizada. Não há contraponto à altura do bloco conservador, ao contrário do caso brasileiro. O que esse Obama de carne e osso poderia oferecer ao Brasil se não consegue concessões nem para si próprio?.
E a economia mundial? Não está crescendo a ponto de justificar esses preços vertiginosos. Isso tem nome: especulação. Não se pode subestimar a capacidade das finanças podres no sentido de engendrar desordem. Não estamos falando de emissão primária de moeda por bancos centrais. Não é disso que se trata. É um avatar de moeda sem nenhum controle. Derivam de coisa nenhuma; derivativos de coisa nenhuma representam a morte da economia; uma nuvem nuclear de dinheiro contaminado e fora de controle da sociedade provoca tragédia onde toca. Isso descarnou Obama.
É o motor do conservadorismo americano atual. Semeou na America do Norte uma sociedade mais conservadora do que a da própria Inglaterra vitoriana, algo inimaginável. É um conservadorismo de bordel, que não conserva coisa nenhuma. É o que resulta da aliança entre o moralismo republicano e a farra das finanças especulativas. Os EUA se tornaram um gigante de barro podre. Em pé, causa desastres; se tombar, o estrago é ainda maior.
Esse horizonte ameaça o Brasil? Felizmente, o Brasil, graças ao poder de iniciativa do governo, saiu-se muito bem. Estou moderadamente otimista quanto ao futuro do país. Mais otimista hoje do que no começo do governo Lula, que herdou condições extremas, ao contrário da Dilma. Se não houver um acidente de percurso na cena externa, podemos ter um bom ciclo adiante.
Hum, menos mal. Mas minha visão positiva quanto à áspera e aguda análise da nossa economista não é nada incomum: afinal, para se obter uma perspectiva mais aproximada da realidade, é preciso atentar para o duro materialismo das mulheres nas palavras que uma outra mulher, a escritora Marguerithe Yourcenar, colocou nos lábios do imperador Adriano.
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