Gente do Igarapé, uma história comum: os Capiberibe
Das pessoas que habitavam o Igarapé das Mulheres, quando de minha chegada, muitas, de lá nunca saíram, ou saíram por um tempo, depois voltaram, outras ganharam o mundo e nunca mais deram o ar da graça. Eu, que passei uma longa temporada em terras distantes, vira e mexe, dou uma descida por lá, quase sempre encontro gente conhecida, a quem peço notícias dos demais, assim recupero o fio da meada de nossas vidas passadas.
A vida por ali era dura, mas também havia brincadeira e alegria. Na maré alta, o igarapé se transformava numa divertida área de lazer, disputávamos natação, mergulho, esconde-esconde e a temerária guerra de barro que, vez por outra, acertava em cheio nossos olhos. Ai! Como ardia! E ao chegar em casa um severo castigo nos aguardava, como era costume na época. Na maré baixa surgia no horizonte uma verdadeira Disneylândia, quilômetros de praia de lama a nossa disposição para o que a imaginação fosse capaz de sugerir. Muita coisa mudou quando a bola entrou em nossas vidas, o que nos fez deixar de lado algumas brincadeiras antigas. As primeiras eram de borracha, nada confortáveis, quando chutávamos forte queimava o dorso do pé e saiamos pulando numa perna só gritando ai ai ai! Era o começo do futelama, prática esportiva que hoje conta com muitos adeptos, jogam com bola oficial, fazem torneios e campeonatos que acontecem na praia de lama em frente à cidade, na maré baixa do rio Amazonas.
Uma coisa interessante, dos que junto comigo tourearam a vida com jogo de cintura e que vivos estão, foram mais longe os que estudaram. Eles ascenderam na escala econômica e social, ganharam destaque e hoje desfrutam de um padrão de vida razoável. Daquele tempo tenho boa lembrança dos Camarão e dos Atana, famílias enormes, muitas meninas e muitos meninos, com os quais cresci fazendo tudo o que é permitido às crianças pobres.
É verdade, nas escolas existentes não cabíamos todos, mas também é verdade que um ou outro dos meus amigos que conseguia vaga no Grupo Escolar Barão do Rio Branco – onde estudei até a metade do curso primário – por falta de acompanhamento dos pais (quase todos analfabetos), cedo abandonavam a escola. Destino reservado aos meninos e meninas de Dona Lulu, de Dona Eurídice, do Seu João Padeiro, de Dona Mundoca, e do Seu Atana, de quem falaremos mais adiante. Esses meus contemporâneos que não estudaram, além da sofrida infância e adolescência, ao constituir família, as chances não lhes foram tantas, e a vida não os tratou com doçura. Poderia ter sido diferente? Claro! Se tivessem continuado a estudar como os Capiberibe ou os Camarão, ou ainda, se todos tivessem escola pública de qualidade que outros países, hoje ricos e mais justos, ofereciam naquela época às suas crianças e adolescentes.
Dezinho e Raimunda eram meus pais. Nas veias dele corria sangue aventureiro e boêmio. Ela, com seus lindos olhos azuis, atraia sorrisos e galanteios, mas no seu recato fechava o cenho. Operária de uma fabrica de confecção em Belém, ao subir no bonde, que ele conduzia, seus olhares se cruzaram, ela se encantou. Alguns dias mais tarde, voltando do trabalho, ela subiu e se sentou na primeira fila, ele levantou-se do seu posto de comando e lhe entregou um envelope, que ela só abriu em casa, ao concluir a leitura do poema que ele lhe dedicara descobriu-se apaixonada. Em pouco tempo, trocaram seus empregos urbanos estáveis para, recém casados, embrenhar-se na floresta.
Na bagagem, além do diploma do ginasial e poesias, Dezinho trouxe o clarinete e o violão, instrumentos que tocava por prazer nas rodadas de amigos em Belém, mas que no interior se transformariam em requisitada atração das festas ribeirinhas, conquistando admiradores e novas amizades, as quais nem sempre agradavam minha mãe, que antes do nascimento dos filhos, meio a contra gosto, o acompanhava nas noitadas nas quais ele era o centro das atenções. Diferentemente de Raimunda, que mal sabia assinar o nome, Dezinho bateu na porta do segundo grau, mesmo tendo chance, não entrou por que não quis, em busca da independência financeira largou os estudos para trabalhar.
Com o casamento, Dezinho arrendou um seringal na foz do rio Ituquara, no município de Breves, no vasto mundo marajoara, e comprou sua primeira embarcação, uma canoa a vela, que denominou Recreativa I. Era o começo de uma frota que imaginava constituir como um meio de comunicação entre os centro de consumo e troca, no caso Belém ou Macapá, para onde levava os produtos que colhia da natureza.
Os filhos foram chegando, como era costume na época, o primogênito João foi parar nas mãos do casal João e Raquel, avós paternos, que viviam na pequena cidade de Capanema, no interior do Pará, que se encarregaram de criá-lo. Dai em diante, de dois em dois anos, eclodia um novo rebento, chegaram então Raquel, Conceição, José e eu, que também sou João, acrescido de Alberto, homenagem de meu pai a um ministro de Getúlio Vargas, um intervalo depois trouxe Aluísio e, por último, um temporão, Raimundo.
Os filhos cresciam, minha mãe não se descuidava. Para estudar, Raquel e Conceição foram se juntar ao irmão João em Capanema, só que morando com o casal sem filhos, Ercila e Alcides, ela, única irmã de meu pai. Dezinho prosperava, a família aumentava e também sua frota, comprou mais uma canoa a vela, denominando-a Recreativa II. Dezinho encarava o mundo com disposição e otimismo, apaixonado pelo andamento da vida em construção, jamais lhe passaria pela cabeça que do dia pra noite lhe ocorresse perder tudo, ou quase tudo, escapou com vida graças a penicilina e a um falso médico, que a mulher amada colocou em seu caminho.
Anos difíceis, aqueles primeiros no Igarapé das Mulheres, meu pai se livrou da bactéria que corroía seu organismo, mas ao ressuscitar, a poesia, o clarinete, o violão e a vontade de viver tinham perdido importância, assustado e desconfiado com o novo mundo que o cercava, entrou em depressão. Lembro dele se embalando em uma rede, mergulhado em si mesmo, fumando sem parar, e de minha mãe tentando animá-lo, provocando-o, chamando-o à responsabilidade, afinal ele tinha filhos para criar. Lembro dela aconselhando-o a procurar o coronel Janari Nunes, então governador do Território Federal do Amapá, que fora seu colega de sala de aula na cidade de Alenquer, no baixo Amazonas, onde nascera. Se a meu pai faltava coragem para encarar tamanha empreitada, sobrava em minha mãe, que mais uma vez arregaçou as mangas, correu atrás e conseguiu retirá-lo do fundo do poço e animá-lo para assumir uma vaga de vigia da usina de força e luz da cidade. Tempos de incertezas, a falta de dinheiro na família me empurrou precocemente ao trabalho, comecei aos nove anos vendendo coisas na rua.
* Este é o quarto de uma série de oito capítulos escritos pelo senador sobre histórias vividas pelo povo da margem esquerda do Rio Amazonas. Clique abaixo para ler os capítulos anteriores:
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina II
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