Fábio Góis
Na data memorável em que, pela primeira vez na história de nossa combalida República, um governador foi preso durante o mandato, sutilezas não deveriam ficar de fora do registro de um dia tão especial. Por mais que tentem ou imposições editoriais os obriguem, certos repórteres, adeptos incorrigíveis (mas aqui cabe correção?) do new jornalism, não podem ignorá-las. É mais forte do que eles.
A tarde já ia lá pelas 17h desta quinta-feira (11) quando veio a notícia: depois de capítulos dignos de um roteiro de Agatha Christie (a escritora inglesa conhecida como “a rainha do crime”, em que pese a licença nada poética), o agora governador licenciado do Distrito Federal, José Roberto Arruda, seria preso, e passaria a noite na chamada “Sala do Estado Maior”, em razão das suas traquinagens cinematográficas à frente do GDF. Com ou sem panetone, dormiria na Diretoria Técnico-científica do Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal (PF). Nada hospitaleiro.
A propósito, e antes que o cacoete factual atropele o viés de crônica destas linhas, vale lembrar que uma circunstância determinante garantiu o pernoite inglório de Arruda nas dependências da PF: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello alegou precisar de mais tempo para estudar documentos e então decidir se concedia habeas corpus em favor de Arruda. Um dia depois, o ministro acabou negando o pedido.
Feita a pausa, voltemos às saborosas amenidades e entrelinhas de um dia sem par. Deslocado para o Palácio de Águas Claras, residência oficial do GDF, senti o frio na barriga premonitório dos grandes acontecimentos. A “carreata” da imprensa, o aparato policial, câmeras, luzes, e a ação de repórteres em frisson tornavam pulsante a labuta. O ineditismo do fato, sumo precioso e almejado de toda reportagem que se preze, estava lá em sua mais eloquente expressão.
Do lado de fora do suntuoso palácio, a reforçar o bloco da imprensa, quatro rapazes e uma mocinha do Movimento Fora Arruda e Toda a Máfia manifestavam ao Congresso em Foco seu entusiasmo, outrora refém do invólucro da impotência. “Hoje é só mais um passo neste processo, o que mostra o quão ‘deslegitimo’ é esse governo’. É só um dia feliz!”, exultava Paulo F., 25 anos, cientista social.
“Todo mundo aqui já apanhou publicamente [da polícia do DF e demais asseclas de Arruda]”, dizia Valdir (nome fictício), antropólogo de 24 anos, resignado e apontando qual seria outra “vitória” do Movimento. “Nossa próxima luta será exigir o voto aberto dos deputados distritais no processo de impeachment de Arruda. A intenção é fazer com que seja conhecido publicamente quem tentar votar a favor dos políticos corruptos.”
Carnaval nem tão fora de época
A esperada saída de Arruda em direção à sua malquista hospedagem teve fundo musical apropriado: como um réquiem ao som de motores, condutores bem informados buzinavam em júbilo ao passar pela residência oficial; passageiros de ônibus se esgueiravam nas janelas com palavras de ordem; motoqueiros proferiam impropérios inaudíveis e abafados pelos capacetes. Mas a palavra de ordem tinha tom universal, e estava clara: “Fora Arruda” era mensagem em uníssono.
No trajeto em direção à Superintendência da PF, a carona com um velho lobo da reportagem, seu pupilo cinegrafista e uma lenda da imprensa escrita se mostrou quase que uma marcha cívica. Não eram poucos os motoristas que, talvez contagiados com o comboio de jornalistas e profissionais da imagem, acionavam suas buzinas em feérica composição de insurgência – buzinas estas que se repetiriam por toda a noite, em frente às instalações da PF. Impossível não imaginar em qual estação estavam eles sintonizados naquele momento.
Um Fiat Palio vermelho, rubro de euforia, trazia no vidro traseiro o espírito gaiato e criativo do cidadão brazuca, em branco giz: “Fica Arruda… na Papuda!”. Para quem não sabe do que se trata, Papuda é o principal presídio do Distrito Federal. Em suma, as ruas estavam tomadas pelo desabafo, e não havia possibilidade de que aquele turbilhão de acontecimentos desaguasse em lago plácido. Não no Paranoá.
Parem em nome do rei!
A presença do Estado, essa máxima tão conflitante, beirou o patético em frente ao local em que Arruda está detido. No momento em que a imprensa se aglomerava em busca de informações, assessores atônitos da PF avisavam, diante de tanto entusiasmo jornalístico, que uma espécie de curralzinho seria montado: cada qual em seu lugar.
Eis que duas vãs – ou melhor, vans – desovaram 12 homens que mais pareciam ter saído de um filme do Sylvester Stallone.
Eram os dóceis moços do COT (Comando de Operações Táticas), loucos para entrar em ação em seus trajes negros a combinar com seus semblantes intimidadores. Devidamente munidos de armas, colete à prova de balas, algemas, radiotransmissores, spray de gás, aparelhos de alta voltagem e – quem sabe? – a espada do Conan, posicionaram-se em frente à entrada vidrada do prédio, e por lá ficaram como soldados de chumbo, impavidamente. Ciborgues a serviço do rei. Sem qualquer expressão facial. Eles e suas varizes.
Será que eles pensaram que os super-repórteres e seus lança-chamas de tinta planejavam invadir a carceragem vip?
Do outro lado das grades – estrutura que não existia na “cela” de Arruda –, petistas, transeuntes e outros pagadores de impostos soltavam seus gritos de vingança: “1, 2, 3, Arruda no xadrez!”, repetia-se ad nauseum. “A linha verde é a ‘marginal Arruda’!”, entoavam outros, em menção à obra de trânsito. Na grama em frente ao local, faixas eram estendidas por autointitulados “cidadãos da W3”. Lia-se: “Ontem, vocês tiraram-nos o pão de cada dia. Hoje, o povo tira-lhes o poder”. Mantras de um povo que não mais aceita dinheiro em meia.
O arrependimento
Na volta para a redação, a conversa com o motorista de táxi era a chave de ouro. “O senhor não votou no Arruda, votou?”, quis saber o repórter, em diálogo-entrevista. O condutor titubeou, negou a princípio, mas entregou. “Para falar a verdade, eu votei. Ninguém poderia imaginar esse desrespeito com o dinheiro público, com a nação”, justificava Marcelino Nunes, 42 anos, taxista com mais de 20 anos de Distrito Federal, pai de dois filhos.
Morador do Varjão, casado também há mais de vinte anos com sua amada, Marcelino exibia seu arrependimento sem nesgas de consciência pesada. “Tudo que tenho ganhei com meu suor, sem precisar tirar nada de ninguém”, ponderava, acrescentando que Arruda e seus apaninguados deveriam devolver seus panetones aos cofres públicos. E arriscou a quase utopia: “Se houvesse lei obrigando-os a cumprir o que prometem nas campanhas… [pausa] aquilo é só para ser eleito”.
Antes da conversa com este que parecia um homem de bem, outro integrante das massas (sem trocadilhos com sua profissão) chegava à PF em sua moto ganha-pão. O motoboy de uma pizzaria de Brasília trazia o jantar de Arruda e seus fiéis comensais: seis embalagens grandes de… pizza! O que mais irônico poderia ser que não esse símbolo da impunidade?
“Quais são os sabores?”, quis saber o repórter. O motoboy disse que não sabia. “Não deu pra sentir o cheiro?”, insistiu o jornalista. “Tem cheiro de pizza”, retrucou o homem, pimenta nos lábios, sem sequer atentar para o perigo da metáfora. &nbs
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