Henrique Mogadouro da Cunha*
A atitude da Polícia Militar nos episódios da Marcha da Maconha e da Marcha da Liberdade, realizadas nos últimos dois sábados respectivamente, reflete bem a postura do Estado frente à questão das drogas. Permitindo que os manifestantes marchassem com a condição de que não houvesse qualquer menção a práticas ilegais, como o uso de drogas ilícitas ou o aborto, a PM exprimiu uma das maiores contradições da política proibicionista idealiza-se um mundo em que não existam o uso de algumas drogas ou a prática do aborto, reprimem-se de maneira simbólica apenas os elos mais fracos de uma rede muito complexa, e o poder público se exime de suas reais responsabilidades.
Nessa nova faceta do proibicionismo ignorante, o Estado não apenas diz ao indivíduo o que ele pode ou não fazer com o próprio corpo, mas chega ao ponto de proibir a manifestação pública e pacífica de uma demanda real pela revisão de alguns dispositivos legais. Peço emprestado um argumento do sociólogo Renato Cinco, candidato a deputado estadual no Rio de Janeiro em 2010: se os defensores da adoção da pena de morte fossem às ruas se manifestar, o tratamento dado a eles seria o mesmo? Afinal, até onde eu sei, punir um criminoso com a morte continua sendo ilegal no nosso país.
Como estudante e defensor dessa causa, eu estava presente na Marcha da Maconha para discutir a revisão das políticas públicas sobre drogas. Fui detido, como outros seis manifestantes, e pude desfrutar do carinhoso trato da PM o colunista Reinaldo Azevedo deveria experimentar ser jogado no chão, chamado de vagabundo, convidado a se sentar no colo de um soldado (e por aí vai), antes de falar com tanta convicção sobre a ação da polícia. Talvez devesse também trabalhar um pouco na rua, sair do escritório, para saber em que consistem as reais ameaças à liberdade de imprensa no Brasil.
Depois de desfrutar de toda a hospitalidade de uma Base Comunitária Móvel, fui levado pela PM ao Distrito Policial e forçado a carregar comigo um cartaz que não me pertencia. Chegando ao Distrito Policial, fui levado à presença de um delegado que, ao contrário dos simpáticos fardados, sabia conversar e tinha respeito à liberdade de expressão. O cartaz que motivara minha detenção era um coqueiro que lembrava uma folha de maconha, e o próprio delegado entendeu que não houve apologia ao crime nos termos do próprio Boletim de Ocorrência. Tive a comprovação: muito ao contrário do que se costuma dizer, a truculência da polícia não é despreparo, é opção política. Posso, agora, ser processado pelo Estado pelo crime de desobediência. A melhor parte é que tal desobediência se deve, ainda nos termos do B.O., a uma referência indireta à maconha, por meio de uma metáfora. Raul Seixas disse certa vez: a desobediência é uma virtude necessária à criatividade. Será apologia à metáfora?
Foi curiosa a resposta do governador Geraldo Alckmin quando questionado sobre a ação da Polícia Militar. Ele criticou a ação e reconheceu que houve excessos ainda bem! , mas não quis se queimar com o conservadorismo rodoviarista paulistano que o elegeu, e criticou os manifestantes por impedir o direito de ir e vir das pessoas. Pois bem, senhor governador, então vamos falar sobre o direito de ir e vir? Aquele direito que vale, quando muito, apenas para os ilustres proprietários de automóveis? Quando muito… Imaginem só a PM descendo o sarrafo nos corredores da Fórmula Indy por atrapalhar o trânsito.
O Brasil é um país maluco mesmo. Um repórter é massacrado pela polícia diante das câmeras, mas a verdadeira ameaça à liberdade de imprensa é sentida no alto dos arranha-céus da Editora Abril. O poder público privatiza o direito de ir e vir, entrega o transporte público nas mãos de concessionárias quase vitalícias, empresta a Marginal Tietê à Fórmula Indy em plena segunda-feira, mas o que atrapalha o trânsito são as manifestações públicas. A TV aberta exibe todos os dias a mais evidente apologia ao consumo de álcool uma droga com impactos individuais e sociais devastadores , mas a verdadeira apologia é defender a revisão das políticas públicas e questionar o papel do Estado.
*Estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo
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