Márcia Denser*
Prosseguindo os comentários sobre o recém lançado “Extinção – estado de sítio” [1] de Paulo Arantes (clique aqui para ver o artigo anterior), gostaríamos de ressaltar o ensaio “Notícias de uma guerra cosmopolita” [2], onde o autor observa que em torno desse novo e espantoso regime de crueldade que define o mundo depois da queda (isto é, após a primeira Guerra do Golfo e o fim da Guerra Fria, início dos anos 90) surge uma grande quantidade de estudos sobre a violência no Brasil e América Latina, sobretudo quanto ao “paradoxo” do recrudescimento exponencial da violência à medida que a jovem democracia brasileira – e latino-americana – se expandia, removendo o entulho autoritário remanescente do ciclo ditatorial.
Segundo Arantes: "Este o escândalo: uma sociedade democrática consolidada tendo que conviver com níveis de violência jamais vistos – tanto na escala como no horror das atrocidades cometidas, obviamente espetacularizadas pela mídia – e sua ampliação, a classe política. (…) Nem a institucionalização democrática consegue domesticar a escalada da violência, nem a intensidade crescente dessa maré consegue empurrar de volta a democracia para seu antigo confinamento oligárquico. Se dissesse agora que esse paradoxo é da mesma ordem que a revelação desconcertante da nova e cruenta belicosidade das sociedades pós-militares, como penso que efetivamente é o caso – e caso de um sistema mundial de violência que vai se desenvolvendo, como no outro, de modo desigual e combinado – precisaria acrescentar a ressalva decisiva de que nunca chegamos a ser uma “sociedade militar” na acepção européia plena. Vale a pena explicar por quê.”
Neste ponto, o autor destaca o papel da guerra na gênese das relações entre concentração de capital e centralização da coerção na formação do Estado europeu moderno. Assim a América Latina é vista como um subsistema de Estados praticamente à margem das guerras internacionais, mas também à margem do tipo de mobilização nacional e negociação concomitante dos conflitos sociais que as guerras exigiam e propiciavam. Os latino-americanos sofreram repetidamente os horrores da repressão do Estado em parte porque foram poupados dos horrores da guerra internacional em grande escala.
É isso. O Brasil não pôde contar com uma das forças mais importantes que na Europa – e durante todo o século XX, nos Estados Unidos – levaram à expansão dos direitos dos cidadãos: a guerra. E a propósito, o autor registra que as ditaduras militares recorrentes não fazem de um Estado um organismo nacional-militar-moderno-clausewitziano, porque geram uma outra variedade de violências. Afinal não seria justo pedir que morra por seu país um povo entregue à própria sorte, desnutrido, comido pela doença, pelo analfabetismo, etc. Não se poderia recrutar como soldado um cidadão sem direitos, como já se sabia muito bem desde a Guerra do Paraguai.
Referindo-se ainda aos estudos sobre violência urbana, Arantes constata uma inversão de perspectiva quando se passa da periferia para o centro: diante da explosão de violência também inusitada nas últimas décadas de crescimento econômico, ninguém fala em coexistência paradoxal entre violência e democracia, mas da descoberta terrível de que algo como “um capitalismo com lei e cidadania” pode não ter sido mais do que uma miragem de trinta anos!
A saber: “enquanto nos democratizávamos na periferia – democracia ainda que marcada pela regressão econômica que também sepultaria a simétrica ilusão desenvolvimentista – as sociedades centrais viviam o retorno dramático da “questão social”, isto é, redescobriam que as desigualdades estavam de volta, cavando uma nova fratura social, que a pobreza não fora banida, sendo os “novos pobres” uma legião, que o racismo e a xenofobia redivivos pareciam recompor o cenário de entreguerras ou, ainda pior, que a violência, supostamente absorvida por um secular processo civilizador, parecia retornar em escala endêmica, não só nos bairros sinistrados e gueitoizados das grandes cidades. Em vez do “paradoxo”, um ferida narcísica de bom tamanho: onde está a “civilização” de sociedades que já não eram mais nem coesas, nem igualitárias e, muito menos, pacíficas? O fato é que a associação entre capitalismo, industrialização e guerra parece vincular “pacificaç
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