Javier Valenzuela inicia sua “Crónica negra” (El País, 10/2/12) afirmando que “una de las Españas vuelve a helar el corazón de los demócratas del planeta”.
Abro um parênteses e confesso. Quando se trata da questão “justiça”, tenho o meu coração congelado há muitos anos. Afinal, com os nossos juízes e tribunais, quem não tem? São tantos anos de decepção que as poucas sentenças que fazem justiça não conseguem quebrar o gelo que carrego no peito.
Valenzuela faz esta afirmação ao comentar a condenação do juiz Baltasar Garzón. Garzón foi condenado (expulso) por cometer o erro de investigar o maior esquema de lavagem de dinheiro da Espanha, o caso Gürtel.
Em 2009, ele descobriu que o Partido Popular (PP), de direita, que atualmente governa a Espanha, estava envolvido neste criminoso esquema.
A condenação de Garzón não fica no campo de uma mera sentença judicial. Vai além, significa a punição da democracia e da busca por justiça.
Baltasar Garzón tornou-se conhecido no mundo todo quando mandou prender o ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998. Em 2002, suspendeu as atividades do partido Batasuna por três anos. Havia a suspeita de que o partido era uma das fontes de financiamento do ETA, grupo terrorista basco.
Ainda no combate ao terrorismo, em 2005, levou 24 suspeitos de pertencerem à Al Qaeda a julgamento – 18 deles foram condenados. Garzón é o juiz que, por tudo que fez, tem que se escrever “Juiz” com “J” maiúsculo.
Esta condenação, ao tempo em que demonstra a ira da direita (PP) espanhola contra o Juiz, também serve como prevenção: ele estava iniciando investigações dos crimes cometidos durante a ditadura de Franco (1936–1975).
Estava empenhado em descobrir como e quem eram os responsáveis pelo desaparecimento de mais de cem mil pessoas (assassinadas, sequestradas ou simplesmente desaparecidas) durante a ditadura franquista.
Centenas de tumbas ou valas comuns nunca foram abertas para identificar os enterrados. Por permanecerem intocáveis estes crimes, o delito permanece impune.
O Supremo Tribunal espanhol entende que Garzón não estava respeitando a lei, muito criticada, de anistia. Juristas, intelectuais, organizações, instituições e inclusive a ONU (2008) interpretam que essa lei deve ser abolida, pois ela contradiz as regras de tratados internacionais. Não pode haver anistia a crimes de lesa humanidade.
A condenação a 11 anos de suspensão (sem poder atuar como juiz) de Baltasar Garzón é uma decisão mais ideológica do que jurídica. Segundo Antonio Elorza (El País, 10/02/12) a imprensa espanhola somou-se à condenação e, de maneira desproporcional, atacou o Juiz Garzón.
A condenação serve para, acima de tudo, castigar quem se atreve a investigar e querer julgar a ditadura de Franco. Garzón foi ingênuo, afirma Elorza, ao achar que é possível fazer na Espanha o que foi possível fazer em outros países: deixar claro perante os espanhóis os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura de Franco.
Segundo Antonio Elorza, o Tribunal de Nuremberg foi imprescindível para mostrar os crimes e afirmar a recusa definitiva do nazismo. Porém, na Espanha, os herdeiros do franquismo, ou seja, os herdeiros dos culpados, que ocupam cargos importantes no Estado espanhol, acabaram condenando e eliminando o juiz.
De acordo com Valenzuela, uma das habilidades da Espanha é esquecer ante a si mesma e ao resto do mundo. Foi assim com a inquisição, a perseguição e expulsão dos judeus e mouros, Torquemada e Franco.
A mídia brasileira não fez a cobertura que se espera deste fato, mas na internet é possível ver as fotos de milhares de pessoas nas ruas e praças da Espanha se manifestando contra a decisão do tribunal, e apoiando Garzón. Os manifestantes levam faixas e cartazes pedindo justiça, reparação e a verdade.
Muitos se mobilizaram na Espanha contra a condenação de Garzón, inclusive os funcionários (colegas de serviço) que trabalhavam com ele. Soltaram uma nota onde manifestam sua solidariedade ao Juiz, cuja última frase transcrevo: “Parece como si nos faltase algo. Lo peor de todo es que desgraciadamente ese algo ya nunca volverá. Fue un día muy triste para la justicia”. Triste para todos os homens e mulheres que sonham com a justiça.
Os juízes vivem recorrendo, ao condenar alguns fatos, ao argumento do Estado de Direito para elaborar as sentenças de algumas de suas condenações. Lendo sobre a condenação do Juiz Baltasar Garzón, concluo que os juízes espanhóis atentaram contra o Estado de Direito.
A condenação de Baltasar Garzón, concordo, gelou o coração de democratas do mundo todo.
Deixe um comentário