Que são ficções senão saudades de um lugar onde nunca se esteve, dum tempo não vivido, de pessoas desconhecidas?
Como no caso do meu avô paterno, morto em circunstâncias trágicas em 1946. De modo que, durante minha infância, ele seria menos que o perfume dum esquecimento, não fossem as lembranças e narrativas recorrentes de minha avó a respeito de certos traços de seu caráter, hábitos, comportamento, fazerem vibrar alguma corda profunda em meu inconsciente, a partir do que, pouco a pouco, ele foi ressurgindo, emergindo da minha imaginação, que completou os elementos que faltavam para torná-lo novamente vivo, para torná-lo inteiramente meu.
Victor, meu avô, o turvo e silencioso Victor, circunspecto, esquivo, fatal, demasiado imerso em Horácio ou Virgílio ou numa infatigável coleção de selos no interior da biblioteca onde se encerrava à noite, depois do jantar, e nos fins de semana, de onde saía apenas para as refeições, as obrigações de chefe da família que cumpria com uma espécie de zelo truculento, como um monge entregue ao delírio da autoflagelação, para assim resgatar sua cota diária de paz, invariavelmente às doze e às dezenove horas, pontualmente, rígido à cabeceira da mesa.
Victor era inflexível: exigia todos presentes, limpos, serenos e rigorosamente no horário. Não admitia negligências, atrasos, a mais tênue insubordinação, pois ali tinha o relho e sabia usá-lo com método, sem ódio ou rancor, sem se impacientar, os pálidos olhos azuis nem duros nem cruéis ou furiosos, apenas inflexíveis.
Victor: os vizinhos costumavam acertar os relógios por suas aparições diárias. Pela manhã, precisamente às nove para pegar o bonde (na época, trabalhava no Diário Oficial onde começara como linotipista e chegara a diretor, cargo que exercia com perversa resignação) e, à tardinha, sua bengala despontava na esquina invariavelmente às cinco horas.
Victor: o tempo e um homem marcado pela fatalidade e a despeito dos hábitos metódicos, austeros, rígidos, talvez em demasia, porque talvez fosse precisamente por causa deles que a fatalidade o tenha ceifado logo após a guerra, em 1946.
Porque Victor usava o rígido cotidiano para afastar a realidade, não que o tempo lhe importasse ou a odiosa rotina, a teia de costumes estúpidos que apanham um sujeito no berço e o largam no caixão, ele queria apenas que o deixassem em paz, paz pela qual pagava diariamente, implacavelmente, obtendo assim o direito ao seu quinhão diário de paz entre seus livros, em silêncio e dispondo do tempo pelo qual tinha de pagar, por isso Victor o odiava, porque precisava detê-lo, fazer-se ainda mais tirano para subjugá-lo, para que não lhe fosse acrescentado um segundo sequer quando finalmente retornasse à biblioteca, às amadas estantes silenciosas, trancasse a porta atrás de si – quando então pudesse esquecê-lo.
Victor: a biblioteca era a sua cidadela cálida e indevassável cheirando a tabaco, fervilhante da vida minuciosa que pulsava nos livros em quieto desalinho nas estantes, galgando as escadas de madeira, acercando-se dos janelões a meio caminho dum viveiro de plantas, sentando-se à escrivaninha cuja tampa redonda corrediça abrigava a velha Remington eriçada de teclas como um buquê de flores metálicas.
Imprevistamente, havia aquele inacreditável abajur lascivo cascateando cromados e efigênias, mais adequado à saleta dum prostíbulo, mas que ali se incorporava dignamente sem perguntas junto à Bergère de couro marrom, ao relógio de pêndulo malignamente parado, às cadeiras de espaldar alto lembrando vagamente instrumentos de suplício medieval.
Assim era o refúgio do avô, a inacreditável ilha de paz no interior daquela casa que retumbava e bramia, o recanto a salvo no casarão estrídulo noite e dia, assolado pela família numerosa, amigos e compadres, primos próximos e distantes, empregados, incontáveis agregados, feito um estúpido país de pássaros, do qual a biblioteca era a ilha de paz cuja porta só se abria no último sábado de cada mês para receber Otto Bruckner, o ourives, com quem meu avô havia estreitado essas amizades formais que começam excluindo a confidência e depressa omitem o diálogo.
Mediam-se taciturnamente no xadrez e incorriam na filatelia, inocentes, abstratos, das oito à meia-noite, quando vovó Teresa entrava com o xerez, os folhados e aguardava, roncando numa cadeira, para estender o chapéu a Bruckner com lembranças à senhora sua mãe.
De modo que Victor raramente se dava conta do que ocorria lá fora, fora do seu âmbito, fora daquele bolsão fora do tempo, isto é, no resto da casa onde longinquamente ribombava o trovão, precipitava-se a roda dos nascimentos e mortes e a vida se encapelava em remoinhos cujo vórtice era vovó Teresa, o expoente matriarcal de toda a região sudeste de São Paulo que, ao longo de três gerações, dominou a família.
Assim era Victor, meu avô, que não se chamava Victor, um ilustre desconhecido do qual tenho uma imensa, infinita saudade.
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