Márcia Denser
A pesquisa do sociólogo paulista Sérgio Miceli (ele próprio discípulo de Pierre Bourdier) sobre as conexões entre intelectuais e poder¹ aponta algumas características comuns à maioria dos nossos escritores: 1) pertencem a famílias decadentes; 2) experimentam o nomadismo, deslocando-se continuamente, não só na escala social, como de casa, cidade, estado; 3) possuem estigmas físicos ou doenças crônicas; 4) sofrem a ausência do pai; 5) são funcionários públicos; 6) atuam na imprensa.
E este é um painel que faz todo o sentido
Vejamos: a decadência familiar e a ruína financeira torna-os profundos conhecedores do coração humano. As inúmeras mudanças, para melhor ou pior, passando por suas várias gradações, instrumentaliza-os com uma visão múltipla da vida. Suprem com os livros a ausência dum pai humano, pois é o pai que nos dá o nome, um lugar no mundo, um sistema de valores, uma profissão, exatamente como os livros. Sem, é claro, um coração ou uma personalidade (ao passo que à mãe cabe a mediação com as emoções, os sonhos, o inconsciente). Os estigmas físicos os excluem dos esportes, inclinando-os à introversão, à misoginia, à solidão.
Quanto ao funcionalismo público, este enquadra-se como uma espécie de "refúgio profissional" de que o escritor necessita para construir uma carreira literária, carreira que eu definiria como uma aposta de cacife altíssimo, de retorno em vida pra lá de incerto ou nulo.
Porque estamos falando de escritores realmente importantes como…
Mário de Andrade – chefe do Departamento de Cultura do Município de S. Paulo (ou seja, ele foi o primeiro secretário municipal de Cultura em Sampa),
Lima Barreto – oficial da Secretaria da Guerra,
Machado de Assis – diretor de contabilidade do Ministério da Viação,
José de Alencar – consultor da Secretaria de Justiça,
Osman Lins – escriturário do Banco do Brasil,
Rachel de Queiroz – professora de escola pública,
Cecília Meireles – idem,
Graciliano Ramos – prefeito, diretor de imprensa oficial,
José Lins do Rêgo – funcionário do Ministério da Fazenda.
Já os grandes poetas e prosadores se concentram no corpo diplomático, constituindo uma elite dentro da elite: Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes.
Escreve Carlos Drummond de Andrade, ele próprio funcionário público, chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema: "O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é a condição ideal: certa mediania que elimina cuidados imediatos, porém não abre perspectivas de ócio absoluto. Cortem-se os víveres e as questões de subsistência imediata, sobrelevando a quaisquer outras, igualmente lhe extinguirão o sopro mágico. A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o. Observe-se que quase toda a literatura brasileira, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários públicos…" (Passeios na Ilha).
Aliás, eu mesma não fujo à regra: sou redatora do Idart (antigo Departamento de Informação e Documentação Artísticas) na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. E também não é por acaso que estou lançando este mês um romance chamado Caim, que é uma história de São Paulo, a saga de uma família decadente e a crônica duma cicatriz.
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¹ Intelectuais à Brasileira. S.Paulo, Companhia das Letras, 2001.
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