Domingo, dia 20/9, estarei no Rio, encerrando a Bienal do Livro 2009 no Espaço Mulheres e Ponto. Me pediram para falar sobre erotismo e literatura, de forma que lá vão algumas reflexões a respeito. Avant la lettre, claro, que meus leitores merecem.
Existe uma frase duma autora americana que define com precisão a diferença entre subjetividade masculina e feminina: “Os orgasmos de Lady Chaterley devem ser de D.H. Lawrence porque eu não sinto assim”. Ao estudar a representação do corpo nos poetas brasileiros, Affonso Romano de Sant’Anna observa que o corpo feminino ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é masculina. Uma constatação simples, mas de graves consequências.
Essa ausência do corpo masculino e presença do corpo feminino começam a ser explicadas pelo fato de que o homem sempre se considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de objeto. Como sujeito, ele se escamoteava, projetando sobre o corpo feminino os seus próprios fantasmas. Aí se porta como o ventríloquo: o corpo é do outro, mas a voz é sua. Mas a mulher transformada em objeto de análise também é o campo de exercício do poder masculino. Do romantismo em diante, a questão do desejo se torna mais diferenciada. Mas ela entra em um novo momento histórico com a grande liberação erótica dos anos 1960 e o surgimento de várias outras linguagens e posturas ideológicas realmente instaladas na modernidade, quando então a subjetividade do homem e a subjetividade da mulher definitivamente se diferenciam, perdendo a relação complementar sujeito/objeto.
As escritoras que surgiram após os anos 60 tiveram que levar adiante um duplo projeto caracterizado por uma literatura que fizesse a crítica do discurso masculino dominante e colocasse a sexualidade feminina como elemento fundamental para a construção da própria identidade. Até porque a experiência erótica leva à afirmação da subjetividade – ao sentido de poder e controle sobre o próprio destino. A criação do discurso erótico representa o reverso de uma moeda cuja face é a inscrição da mulher na literatura – não mais como objeto do masculino, numa relação de ventriloquismo literário (daí o sujeito que é pensado pela linguagem dominante), mas sujeito da ação enunciando sua própria fala.
No caso da mulher, considerando o controle social sobre seu corpo que ocorre através da história – a exemplo, veja-se a questão do aborto, da contracepção, o regime do casamento monogâmico, esteio do capitalismo –, a manifestação do erotismo é fundamental para a construção da própria subjetividade. Historicamente, se usasse o erotismo em seu discurso, a escritora transgredia a separação tácita existente entre esfera pública e privada, tornando-se ela própria “mulher pública” ou” prostituta” – a mulher pública por excelência – e quem que ousasse agir em público arriscava-se a ser identificada dessa forma, isto é, como tabu. Obviamente, o próprio ato de escrever constituiu, em determinado momento histórico, a transgressão feminina do espaço público.
Contudo, há apenas 20 anos, ao publicar O caderno rosa de Lori Lamby (1989), Hilda Hilst foi execrada publicamente, uma vez que, para muitos, transgrediu os limites do “pornográfico” – ligado ao grotesco, ao obsceno, sem valor literário – e do “erótico” – associado à realização estética. Na verdade, o caso Hilda foi exemplar e ilustrativo: quando a grande escritora decidiu esculhambar, variar, mudar o disco, chutar o pau da barraca, algo que qualquer um tem o direito de fazer, seja lá qual for a razão – o preconceito ressurgiu inteirinho, novinho em folha, pulverizando décadas de transformações radicais, dos costumes à estética literária. O que significa que as coisas aparentam mudar rapidamente apenas na superfície, pois no âmbito da consciência profunda as transformações são lentíssimas, levam séculos para se completar – quando não se regride.
E ainda ocorre uma espécie de silêncio generalizado da crítica em relação ao discurso erótico da mulher, enquanto que o erotismo de autoria masculina é saudado com grandes elogios.
Mas o buraco é ainda mais embaixo: o fato é que o subdesenvolvimento da expressão linguística no que toca à libido transforma quase sempre em pornografia de luxo toda matéria erótica. Claro que muitos de nós, escritores, homens e mulheres, já conseguimos esboçar com ousadia e destemor o que algum dia escreveremos com naturalidade e com direito.
Porque antes ou simultaneamente é preciso conquistar outras liberdades: a colonização, a miséria, a injustiça e a desigualdade social também nos mutilam esteticamente. Pretender-se dono de uma linguagem erótica quando nem sequer se ganhou a soberania política é ilusão de garota imitando Beyoncé.
É preciso deixar claro: não se é obrigado a escrever uma literatura erótica como declarar Imposto de Renda ou renovar a carteira de motorista. O problema é quando chega a hora de escrever o tal trecho erótico, não sai, quer dizer, ou sai eufemístico, como se o sujeito estivesse escrevendo com luvas, ou sai pornografia grossa e burra (geralmente erotismo literário direto é pesado, indigesto, impúbere, sombrio, frenético, hoteleiro, adúltero, incestuoso, lúgubre, gerontológico, funéreo – conotações limítrofres entre sexo e morte, sexo e decepção), donde que a emoção do indizível passa e este resta indizível para sempre.
Por isso o verdadeiro erotismo – que nem todos distinguem da mera sexualidade – é inconcebível sem sutileza, naquele sentido de refinamento da linguagem no ponto exato em que deliciosamente nos toca e dá tesão. E em literatura, essa sutileza nasce do exercício natural de uma liberdade e de uma descompostura que correspondem, semanticamente, à eliminação dos tabus no plano cultural (e da escritura) e, sintaticamente, ao domínio técnico do ofício de escritor.
E isso vale para ambos, homens e mulheres.
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