A CPI dos Sanguessugas produziu um fato excepcional ao aprovar no início da tarde de ontem o relatório preliminar (veja a íntegra) que pede a abertura de processos por quebra de decoro parlamentar contra 69 deputados federais e três senadores (veja a lista). Nada menos que 12% do Parlamento federal foi acusado de cometer irregularidades que podem levar um número inédito de congressistas a responder a processos de cassação.
Mesmo assim, ao determinar o arquivamento sumário das denúncias contra outros 18 parlamentares (veja a lista), a comissão deixou dúvidas sobre os critérios que utilizou ao selecionar os nomes sujeitos a serem processados nos Conselhos de Ética da Câmara e do Senado.
O próprio relatório, com suas 975 páginas (sem contar os anexos), fornece dados bastante incriminadoras em relação a vários desses 18 congressistas. No entanto, ao explicar por que a comissão decidiu inocentá-los, o documento é pouco esclarecedor.
Na maioria dos casos, limita-se a dizer que informações adicionais prestadas pelo empresário Luiz Antônio Trevisan Vedoin, um dos donos da Planam, empresa que comandava a chamada máfia das ambulâncias, "elidem (isto é, eliminam) a conclusão de envolvimento do parlamentar". Como tais informações foram repassadas em depoimentos – tomados pela CPI nos últimos dias 3 e 4 – ainda não divulgados integralmente, fica ainda mais difícil entender os critérios adotados pela comissão.
Além disso, o relatório deixa claro que a comissão não estenderá as investigações às prefeituras municipais, embora elas, como admite o documento, tenham participação fundamental nas ilegalidades, desde o início do esquema, em 1998. São fartos os indícios de que essa frente de apuração, tocada no momento pela Polícia Federal, reúne potencial para trazer resultados reveladores (leia mais).
Outra lacuna no relatório é ausência das peças de defesa apresentadas pelos parlamentares acusados. A falta delas dificulta que se compare até mesmo a situação dos denunciados (clique aqui para ver a base eleitoral deles) com a dos inocentados.
Alguns dos inocentados
Entre os inocentados pela CPI, está a deputada Teté Bezerra (PMDB-MT), mulher do ex-senador Carlos Bezerra, que presidiu o INSS durante o governo Lula e que Darci Vedoin disse conhecer há dez anos. Luiz Antônio Vedoin relatou à Justiça Federal de Mato Grosso que, em 2002, contribuiu com "cerca de R$ 100 mil" para a campanha de Carlos Bezerra ao governo mato-grossense.
Ronildo Pereira, também empresário e sócio informal da família Vedoin nas fraudes praticadas na aplicação de recursos federais, disse que a doação foi maior, chegando a R$ 200 mil. Segundo Ronildo, em troca, o ex-senador "prometeu facilidades dentro da Fundação Nacional de Saúde".
Luiz Antônio e o pai, Darci José Vedoin, também informaram às autoridades que faziam pagamentos regulares para que um assessor de Teté, Newton Augusto Sabaraense, e seu pai (Newton Sabaraense) acompanhassem no Ministério da Educação processos de interesse da Planam.
O assessor foi denunciado à Justiça pela Procuradoria da República em Mato Grosso. De acordo com o procurador Mário Lúcio Avelar, o ex-senador era um dos líderes do esquema de mobilização de parlamentares com vistas à apresentação de emendas destinadas a contratos obtidos por meio de licitações fraudulentas. Já Sabaraense, concluiu Avelar, fazia lobby em favor da liberação dos recursos no Ministério da Saúde.
Para completar, entre os documentos apreendidos nas empresas envolvidas com a máfia, foi encontrada uma planilha que indicava o pagamento de um total de R$ 84 mil a Teté. Que, ainda assim, foi contemplada com o arquivamento da denúncia.
Outro exemplo é o deputado Fernando Estima (PPS-SP). Ronildo conta que Estima era um dos congressistas com os quais havia acordo para pagar 10% do valor dos contratos obtidos pela máfia por meio da apresentação de emendas parlamentares ao orçamento da União.
O empresário afirmou, em depoimento, que o deputado paulista recebeu R$ 10 mil no dia 26 de abril de 2005, a título de antecipação pelo trabalho que prestaria à máfia. Data e valor idênticos aparecem, junto com o nome "Fernando Estima", em uma agenda de couro apreendida na empresa de Ronildo, a Medical Center Comércio de Equipamentos e Produtos Médico-Hospitalares.
E ainda há várias gravações telefônicas – todas igualmente citadas no relatório – em que Cristian Ferreira Viana, assessor do parlamentar, negocia a apresentação de emenda para projeto de inclusão digital.
Luiz Antônio Vedoin, em diversos depoimentos, também relatou ter mantido relacionamento desde 2004 com os deputados Gilberto Nascimento (PMDB-SP) e Jefferson Campos (PTB-SP). Ao último, deu um ônibus com equipamentos odontológicos para, conforme o relatório, "que o irmão do parlamentar pudesse fazer a sua campanha (do irmão) para vereador, no ano de 2004, no município de Sorocaba, a título de comissão pelo direcionamento das licitações".
Ouvida pela Polícia Federal e pela Justiça, Maria da Penha Lino, ex-funcionária da Planam que foi assessora especial do deputado e ex-ministro da Saúde Saraiva Felipe (PMDB-MG), apontou Gilberto e Jefferson como integrantes da máfia dos sanguessugas. Era Maria da Penha quem tinha a incumbência de agilizar os processos do "esquema Planam" dentro do Ministério da Saúde.
A dupla de parlamentares apresentou emendas que permitiu entregar 13 ambulâncias – embora Luiz Antônio diga que tenham sido 14 – ao Movimento Alpha de Ação Comunitária, entidade com sede em Santos (SP). Ronildo contou que Jefferson, líder da Igreja do Evangelho Quadrangular, recebeu R$ 15 mil em espécie de Luiz Antônio em dezembro de 2004 (o que Vedoin nega). Tanto Jefferson quanto Gilberto, contudo, foram poupados.
O que pode acontecer agora
Como a CPI não esclarece as razões pelas quais preservou os 18 parlamentares, é razoável supor que pressões políticas possam ter exercido considerável influência no formato final do relatório. As pressões, chegou a confessar ontem o relator da comissão, senador Amir Lando (PMDB-RO), atingiram nos últimos dias "um nível insuportável".
No caso de 72 deputados ou senadores, é verdade, as pressões não surtiram efeito. Mas, o que acontecerá com os outros 18? O destino deles agora está nas mãos da Procuradoria Geral da República. A instituição, que já denunciou 57 parlamentares federais que atualmente respondem a inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF), prepara denúncia contra outros membros do Congresso.
Enquanto isso, a Câmara e o Senado se defrontam com grandes dificuldades para dar andamento aos processos contra os 72 acusados. De acordo com o relatório aprovado ontem pela CPI (com o voto contrário do senador Wellington Salgado, PMDB-MG, e a abstenção do senador Sibá Machado, PT-AC), o "conjunto probatório, inquestionavelmente, aponta para a ocorrência dos crimes de concussão, corrupção passiva, condescendência criminosa e advocacia administrativa".
Dificilmente, porém, os trâmites processuais a serem seguidos permitirão que a cassação de qualquer um dos envolvidos seja votada ainda neste ano (leia mais). Ontem à tarde, o presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), afirmou que convocará uma reunião da Mesa Diretora para a próxima terça-feira com o objetivo de tentar reduzir o prazo de defesa dos parlamentares denunciados.
O corregedor da Câmara, deputado Ciro Nogueira (PP-PI), também anunciou que a Casa deverá alterar o Ato da Mesa n° 17, que regulamenta os trâmites de processos contra parlamentares, de modo a possibilitar o envio dos processos ao Conselho de Ética antes das eleições. Mesmo que isso aconteça, no entanto, os prazos regimentais contarão em favor dos acusados. Assim, o cenário mais provável continuaria sendo a realização de votações de cassação no Plenário da Câmara ou do Senado apenas em 2007.
Ou seja: correria de fato esse risco somente os dois senadores que estão no meio do mandato (Serys Slhessarenko, PT-MT, e Magno Malta, PL-ES) ou os parlamentares que se reelegerem em 1º de outubro.
Paralelamente ao trâmite dos processos por quebra de decoro, a CPI continuará as investigações. Concluída a primeira parte dos trabalhos, concentrada na apuração dos atos praticados por parlamentares, os membros da comissão se dedicarão prioritariamente a dois temas.
O primeiro deles é a participação do Executivo nas fraudes. Já é consenso na comissão que a apuração, até aqui voltada principalmente para a área de saúde, reservará maior atenção aos ministérios da Ciência e Tecnologia, Educação e Comunicações. O outro ponto, relativo à data que servirá de marco para as investigações, é alvo de profundas divergências na CPI.
Os números do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), programa que mostra a evolução dos gastos da administração federal direta, demonstram que os recursos liberados para a compra de ambulâncias atingiram seu auge entre os anos de 2001 e 2002 (1.576 convênios e R$ 106 milhões, contra 1.009 convênios e R$ 82,1 milhões nos dois anos seguintes). Parlamentares da oposição, porém, resistem a investigações que se estendam ao governo anterior.
Até 22 dezembro, quando termina o prazo de funcionamento da comissão, a CPI também poderá animar o noticiário com a apuração do eventual envolvimento de ex-ministros nas fraudes.
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